Entrevista

Desafios de um mandato que acaba de começar

Mary Lawlor

Um diálogo entre a nova Relatora Especial da ONU sobre defensoras e defensores dos direitos humanos e a sociedade civil

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Em entrevista à Revista Sur,11. A Revista Sur gostaria de agradecer às pessoas e organizações da sociedade civil que, a nosso convite, enviaram sugestões de perguntas e, assim, tornaram a entrevista mais plural e participativa. Mary Lawlor, a nova Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação das defensoras e dos defensores dos direitos humanos (DDH) desde maio de 2020,22. Mais detalhes sobre Mary Lawlor estão disponíveis em: “Special Rapporteur on the Situation of Human Rights Defenders”, OHCHR, 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.ohchr.org/EN/Issues/SRHRDefenders/Pages/SRHRDefendersIndex.aspx. compartilha sua experiência pessoal e profissional, reafirma a necessidade constante de legitimar, promover e defender a vida e o trabalho de defensoras e defensores em todo o mundo e identifica alguns dos desafios urgentes que ela enfrentará durante seu mandato.

Revista Sur • O que a levou a trabalhar com direitos humanos?

Mary Lawlor • Eu conheci Sean MacBride, vencedor do Prêmio Nobel da Paz, do Prêmio Lenin da Paz e da Medalha Americana pela Justiça, e um dos membros fundadores da Anistia Internacional. Uma noite me pediram para ir buscá-lo no aeroporto. Ele estava voltando da Rússia. Quando chegamos à sua casa, ele me pediu para entrar e ajudá-lo com questões do seu cargo. Ele trabalhou até altas horas da madrugada, respondendo toda sua correspondência e oferecendo conselho ou ajuda para pessoas em diferentes assuntos. Naquela época, ele deveria estar com seus 70 anos. Não consegui superar o fato de que ele se importava tão profundamente, e assim entrei para a Seção Irlandesa da Anistia em 1975. E, é claro, uma vez que você está ciente da injustiça e pode ver como é possível fazer mudanças através da ação você não consegue se afastar.

Sur • Quais são suas principais prioridades temáticas para o mandato?

M.L. • Pretendo focar a atenção nas defensoras e nos defensores dos direitos humanos mais expostos a assassinatos e outros ataques violentos, incluindo um foco nas pessoas mais marginalizadas e vulneráveis. Entre elas, mulheres defensoras dos direitos humanos, as pessoas que defendem os direitos das pessoas LGBTQI+, DDHs que são crianças, DDHs com deficiência, DDHs que trabalham com os direitos dos migrantes e questões relacionadas, aquelas que trabalham com a crise climática e em áreas isoladas e remotas. As prioridades também incluem DDHs que cumprem longas penas na prisão, represálias contra defensoras e defensores dos direitos humanos após sua cooperação com as Nações Unidas, a questão da impunidade daqueles que atacam DDHs, o papel das empresas tanto em prejudicar quanto em defender o trabalho de defensoras e defensores dos direitos humanos e um foco também no fortalecimento do acompanhamento de casos individuais trazidos à nossa atenção. Eu também irei focar minha atenção em como o mecanismo da Revisão Periódica Universal pode ser melhor utilizado para proteger pessoas que defendem os direitos humanos.

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Sur • Quais são as lacunas atuais na proteção internacional e regional para defensoras e defensores dos direitos humanos?

M.L. • A principal lacuna é a falta de vontade política para reconhecer e apoiar publicamente o trabalho legítimo de defensoras e defensores dos direitos humanos de acordo com a Declaração da ONU sobre DDHs e colocar em jogo a educação e as leis necessárias que irão garantir isto. A impunidade alimenta os riscos: centenas de pessoas que defendem os direitos humanos são mortas todos os anos, e grande parte do problema é que os perpetradores raramente são levados à justiça. Portanto, dispor das leis é um passo necessário, mas não é suficiente, a menos que as pessoas que atacam DDHs saibam que serão responsabilizadas.

Sur • O que mais pode ser feito para proteger e apoiar DDHs que estão particularmente em risco (incluindo mulheres defensoras dos direitos humanos, indígenas defensores dos direitos humanos, DDHs que trabalham com empresas e direitos humanos, terra e meio ambiente e pessoas que defendem minorias)?

M.L. • Eu acho que a primeira coisa a ser feita é reconhecer e dar credibilidade ao trabalho dessas pessoas. Para mulheres e defensoras e defensores LGBTQI+ que trabalham em sociedades patriarcais ou sob fundamentalismo religioso, seu trabalho para desmantelar normas sociais e práticas culturais negativas que não permitem a igualdade terá que continuar. Para DDHs que trabalham com direitos indígenas e direitos da terra e ambientais no contexto de empresas e direitos humanos, deve haver consentimento livre, prévio e informado das comunidades afetadas e padrões obrigatórios de devida diligência em direitos humanos para garantir que não haverá impactos nos direitos humanos como resultado de suas atividades.

Muitas vezes, DDHs são repudiadas por governos e empresas como sendo pessoas contrárias ao desenvolvimento ou como reclamantes em série, em vez de [serem vistas como] pessoas que ajudam a sociedade. Tudo isso alimenta uma imagem de pessoas incômodas, o que por si só pode se transformar em ameaças e ataques. Mudar essa reputação apresentando seu trabalho de forma positiva também pode ajudar.

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Sur • Quais políticas estatais têm sido mais eficazes na proteção de pessoas defensoras dos direitos humanos?

M.L. • Ninguém tem uma varinha mágica, mas vários países estão tentando – México, Colômbia e outros criaram mecanismos de proteção de DDHs, com diferentes níveis de confiança e sucesso. A União Europeia e outros países – incluindo Irlanda, Noruega e Suíça – têm diretrizes sobre como seus funcionários devem lidar com DDHs, e a Noruega lidera as resoluções da ONU para proteger defensoras e defensores dos direitos humanos. Tudo isso ajuda a construir uma cultura de proteção. A Costa do Marfim e Burkina Fasso adotaram leis de proteção de pessoas que defendem os direitos humanos.

Sur • Em que medida a definição da ONU sobre “defensoras e defensores dos direitos humanos” pode ser aplicada a diferentes ações que não são reconhecidas como parte da defesa dos direitos humanos? Em outras palavras, como protegemos as pessoas que defendem os direitos humanos, mas que não se reconhecem como defensores ou que possuem reservas quanto a este título?

M.L. • Para as defensoras e os defensores dos direitos humanos que não se reconhecem como tal ou que não gostam do título, eu me refiro a elas de acordo com o que utilizam para se descreverem e acrescento DDHs também. Assim, em minhas comunicações, eu poderia me referir a alguém como “jornalista e defensor dos direitos humanos” ou “líder comunitário e defensor dos direitos humanos”, “ativista das mulheres e defensora dos direitos humanos” ou “sindicalista e defensor dos direitos humanos”. Eu acho que é muito importante que vinculemos o trabalho dessas pessoas para promover e proteger os direitos humanos ao título de “defensor dos direitos humanos”. É o que a ONU estabeleceu depois de 13 anos e é a base sobre a qual procuramos proteger as/os DDHs.

Sur • Como uma mulher branca, como você percebe as ameaças e a violência presentes no cotidiano das defensoras e dos defensores negros dos direitos humanos?

M.L. • As defensoras e os defensores negros dos direitos humanos são alvo de discriminação institucional por causa do trabalho que realizam. Muitas dessas pessoas sofreram ameaças de morte, ataques físicos, prisões arbitrárias e ações judiciais. O número elevado de assassinatos é especialmente preocupante e ocorre em um contexto de impunidade generalizada. Acho que é preciso muita coragem para começar cada dia com o peso sobre os ombros da discriminação com base na cor e continuar a trabalhar pela justiça para a comunidade, apesar do grande e agregado risco pessoal envolvido. Reconheço que não é uma experiência que eu tenha vivido – ser uma defensora dos direitos humanos de cor – e percebo que é importante ouvir e ser guiada pelo que essas pessoas me dizem.

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Sur • Como você avalia a deterioração da proteção dos direitos humanos no Brasil?

M.L. • Os desafios e as ameaças enfrentados por defensoras e defensores dos direitos humanos no Brasil são muito altos, especialmente para as pessoas que trabalham com questões da terra, do meio ambiente, dos povos indígenas e dos direitos LGBTQI+. A corrupção e o abuso de poder são desenfreados, particularmente em áreas remotas onde as plantações de cana-de-açúcar e a exploração da Amazônia beneficiam os ricos e poderosos e passam despercebidos pelo governo populista de direita, contaminado por escândalos de corrupção. As pessoas que expõem tudo isso e trabalham pelos direitos dos milhões que vivem em extrema pobreza são ameaçadas, criminalizadas e mortas.

Sur • O que as pessoas podem fazer para apoiar o trabalho das defensoras e dos defensores dos direitos humanos?

M.L. • Como disse o poeta irlandês Seamus Heaney: “Acho que fomos colocados aqui para melhorar a civilização” [tradução livre]. Eu iria além e diria que temos que escolher a civilização todos os dias. As pessoas devem entender que o trabalho das defensoras e dos defensores dos direitos humanos para construir sociedades civis e justas é um benefício para todo mundo – mesmo que você não seja impactado pela injustiça. Temos que ser ativos na formação de uma sociedade sobre os princípios de equidade, justiça e igualdade, na qual toda voz é ouvida. Portanto, aqueles que podem elevar vozes devem fazê-lo; aqueles que têm dinheiro devem contribuir para as ONGs que trabalham pelos direitos de suas comunidades; aqueles que são líderes de opinião devem falar sobre a credibilidade e legitimidade do trabalho das defensoras e dos defensores dos direitos humanos. Todos nós devemos olhar como tratamos os outros – se temos algum preconceito inconsciente em nossos comportamentos, e, se assim for, devemos trabalhar para educar a nós mesmos e nossas famílias. Temos que educar a sociedade e criar redes nas quais as pessoas que defendem os direitos humanos se sintam mais protegidas.

Sur • Como a Covid-19 afeta DDHs? Você vê algum risco nas novas formas de vigilância que surgem com o combate à pandemia?

M.L. • Desde que comecei a trabalhar no mandato, há alguns meses, tenho escutado todos os dias DDHs. A Covid está moldando muito do trabalho dessas pessoas – algumas delas têm o vírus, outras estão tendo que adaptar o que fazem para fornecer alimentos e remédios às suas comunidades locais em vez de fazer advocacy político. Outras se sentem vulneráveis porque precisam ficar em casa e sentem que são alvos parados, em vez de estarem fora e em movimento. A segurança digital é obviamente uma prioridade agora, já que muito trabalho mudou para o formato on-line. Portanto, sim, existem novos riscos, especialmente em relação à vigilância digital.

 

Foto: Organização das Nações Unidas.33. Fonte: https://www.ohchr.org/EN/Issues/SRHRDefenders/Pages/MaryLawlor.aspx.

Mary Lawlor - Irlanda

Recebido em julho de 2020.

Original em inglês.
Traduzido por Pâmela de Almeida Resende.