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Decreto de armas e bancada evangélica

Silvia Virginia Silva de Souza

Desafios para o advocacy em direitos humanos

Joel Raupe

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RESUMO

A partir das experiências da autora como assessora de advocacy no Congresso Nacional brasileiro representando a Conectas Direitos Humanos, organização internacional da sociedade civil brasileira que atua há 18 anos na efetivação e manutenção dos direitos humanos, este artigo apresenta um estudo de caso em que analisa o posicionamento da atual bancada evangélica em relação aos decretos que flexibilizaram a posse e o porte de armas no Brasil (nºs 9.785/2019 e 9.797/2019). Considera-se, para tanto, o atual contexto político em que essas normativas se inserem, assim como a narrativa construída em torno da imposição dos valores cristãos como valores morais e sociais e as possíveis contradições neste discurso, apontando-se para o recrudescimento das normas penais e da “autoproteção” do cidadão. Pretende-se, ainda, analisar os discursos de alguns parlamentares que compõem essa bancada e a influência que exercem na formulação de políticas de segurança pública, bem como as implicações desses posicionamentos no exercício do advocacy como forma de atuação, junto à sociedade civil, em diálogos possíveis para a manutenção e defesa de direitos fundamentais.

Palavras-Chave

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1. A influência dos evangélicos no atual contexto político-social

As eleições brasileiras de 2018, que alçaram o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República com um expressivo apoio da comunidade evangélica, trouxeram à tona posicionamentos conflituosos por meio de projetos apoiados por políticos evangélicos e suas bases.

Adepto de ideias conservadoras nos costumes e liberais na economia, admirador declarado de Donald Trump11. No encontro com o presidente estadunidense na Casa Branca, Bolsonaro declarou que sempre admirou os EUA, o que teria aumentado com a chegada de Trump à presidência do país; Patrícia Campos Mello e Marina Dias, “Após Bolsonaro Abrir Mão de Benefício na OMC, Trump Apoia Entrada do Brasil na OCDE.” Folha de S.Paulo, 19 de março de 2019, acesso em 18 de julho de 2019, https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/apos-elogios-e-concessoes-de-bolsonaro-trump-apoia-entrada-do-brasil-na-ocde.shtml. e favorável a políticas armamentistas, o presidente eleito nunca escondeu durante a campanha eleitoral sua pretensão de aprovar leis que culminariam no recrudescimento penal e na flexibilização do Estatuto do Desarmamento,22. O Estatuto do Desarmamento é uma lei federal do Brasil (no. 10.826) sancionada em 23 de dezembro de 2003 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a qual institui uma política pública de desarmamento da população e que foi regulamentada pelo decreto no. 5.123 de 1º de julho de 2004, o qual, por sua vez, foi revogado pelo decreto no. 9.785 de 7 de maio de 2019, sendo este último alterado pelo decreto no. 9.797 de 21 de maio de 2019. possibilitando o armamento da população como parte de sua política de segurança pública. No entanto, uma contradição é o fato de grandes lideranças do meio cristão, principalmente os evangélicos, apoiarem um projeto de governo cujo princípio é “olho por olho, dente por dente”, com base na ideia de que o cidadão armado, em tese, inibirá ações criminosas de bandidos também armados.

Esse princípio está no cerne da “lei de talião” criada na antiga Mesopotâmia,33. Mauro Fernando Meister, “Olho por Olho: A lei do Talião no Contexto Bíblico,” Revista Fides Reformata XII, no. 1 (2007): 58. presente no Código de Hamurabi (1750-1730 a.C.) e na narrativa bíblica do Antigo Testamento, segundo o qual o critério de justiça era a reciprocidade entre o crime e a pena. O infrator deveria ser punido na igual medida do sofrimento que causara. Segundo a Bíblia (Antigo Testamento):

Quando também alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: Quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará.44. Lv 24:19-20.

Séculos mais tarde, porém, Jesus Cristo revogaria a lei de talião no Sermão do Monte (Novo Testamento), dando aos seus seguidores uma orientação cujo princípio é o perdão e a prática da não violência.

Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra;… Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus.55. Mt 5: 38-39; 43-44.

Dito isto, para compreender melhor o lugar dos evangélicos no contexto da atual política brasileira é necessário levar em consideração alguns elementos. Entre eles, um fator importante é o crescimento exponencial da população evangélica. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou no Censo de 2010 que o percentual de evangélicos no Brasil subira de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010, ao passo que o número de católicos sofrera um declive passando de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010.66. “Censo 2010: Número de Católicos Cai e Aumenta o de Evangélicos, Espíritas e sem Religião,” IBGE, 29 de junho de 2012, acesso em 30 de julho de 2019, https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?view=noticia&id=3&idnoticia=2170&busca=1&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao. Há estimativas de que em 2030 a população evangélica será a maior do país, de acordo com as religiões declaradas.

Segundo Ronaldo Almeida, em conferência na Fundação FHC,77. Otávio Dias, “Os Evangélicos na Sociedade e na Política: Efeitos e Significados de uma Influência Crescente.” Fundação FHC, 9 de maio de 2019, acesso em 29 de junho de 2019, https://fundacaofhc.org.br/iniciativas/debates/os-evangelicos-na-sociedade-e-na-politica-efeitos-e-significados-de-uma-influencia-crescente. imaginava-se que o aumento da população evangélica chegaria a um teto nos anos 2000. No entanto, esse crescimento se manteve constante e em várias camadas sociais por todo o país, com destaque majoritário entre os mais pobres, menos escolarizados e não brancos. Isto é, a maioria dos evangélicos é pobre, preta e periférica.

Nas décadas de 1980 e 90, o Brasil sofreu um intenso processo de favelização decorrente das migrações internas e do êxodo rural. As igrejas evangélicas também acompanharam esse movimento e se expandiram para as áreas periféricas,88. Reinaldo Azevedo, “O IBGE e a Religião — Cristãos são 86,8% do Brasil; Católicos Caem para 64,6%; Evangélicos já são 22,2%.” Veja, 18 de fevereiro de 2017, acesso em 20 de julho de 2019, https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/o-ibge-e-a-religiao-cristaos-sao-86-8-do-brasil-catolicos-caem-para-64-6-evangelicos-ja-sao-22-2/. em especial a Assembleia de Deus, que abriu diversos templos em bairros de periferia e atualmente é a igreja com maior número de fiéis. Segundo o Censo,99. “Censo 2010,” IBGE, 2012. a Assembleia de Deus possuía naquela época 12 milhões de membros.

O fato de grande parte da população evangélica viver em áreas periféricas, onde os altos índices de desigualdade e vulnerabilidade em relação ao crime organizado e às milícias locais podem ser compreendidos como gatilho para o apoio a Jair Bolsonaro, que aparece como solução imediata para essa população carente de segurança pública e há tempos abandonada pelo Estado.1010. Magali do Nascimento Cunha, “Religião e Política no Brasil: Um Olhar sobre o Lugar dos Evangélicos nas Eleições 2018,” Ciber Teologia – Revista de Teologia e Cultura 58, ano XIV (maio/dezembro de 2018), acesso em 8 de junho de 2019, https://ciberteologia.com.br/post/artigo/religiao-e-politica-no-brasil-um-olhar-sobre-o-lugar-dos-evangelicos-nas-eleicoes-2018.

Além disso, os evangélicos possuem uma linguagem própria, incluindo símbolos e metáforas decorrentes de uma compreensão específica de mundo. Exemplo disso é o imaginário do combate aos inimigos, muito presente na cultura evangélica e ilustrado pela figura do Deus como “Senhor dos Exércitos”1111. Ibid. que vai à frente no campo de batalha. Vale lembrar também que durante a campanha eleitoral circularam em grupos de WhatsApp mensagens com afirmações de que Bolsonaro era o novo “messias” enviado por Deus para governar o Brasil, pelo fato de ter “Messias” como seu nome do meio, sendo este considerado um sinal divino.

Dessa forma, o modo como os evangélicos se relacionam com o mundo é a chave para o entendimento da leitura que muitos deles fizeram do “Capitão Bolsonaro” – como era chamado nas campanhas – enquanto líder escolhido por Deus para salvar o Brasil de um alegado caos, atribuído ao Partido dos Trabalhadores,1212. Após os escândalos de corrupção em empresas estatais brasileiras no período em que o Partido dos Trabalhadores (PT) governava o Brasil, trazidos à tona pela Operação Lava-Jato, instalou-se na população um sentimento “antipetista” que foi largamente cultivado pelos opositores do partido nas campanhas para as eleições presidenciais de 2018. e da corrupção.1313. Cunha, “Religião e Política no Brasil,” 2018.

1.1 Evangélicos e seu projeto de poder

A despeito de o Brasil continuar sendo um país predominantemente católico/cristão, a gradativa mudança de orientação religiosa da população – de católica para evangélica – apontada pelo IBGE reflete-se também na política e no parlamento brasileiros. Essa realidade parece responder a um projeto de poder liderado por igrejas pentecostais e neopentecostais, principalmente a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada pelo bispo Edir Macedo nos anos de 1980, e a Assembleia de Deus, fundada em 1911 por missionários imigrantes. Ambas as igrejas são fundadoras de partidos políticos: o Partido Republicano Brasileiro (PRB) e o Partido Social Cristão (PSC), respectivamente, os quais costumam lançar diversos candidatos a cada eleição municipal, estadual e federal.

Edir Macedo foi uma das primeiras lideranças evangélicas a apoiar publicamente uma candidatura à Presidência da República. Em 1989, ele apoiou Fernando Collor de Mello, eventualmente eleito presidente naquele pleito. Em seu livro, Plano de Poder: Deus, os Cristãos e a Política, Macedo discursa sobre o “plano de Deus” em transformar o Brasil em uma grande nação evangélica e convoca os evangélicos a tomarem parte deste plano: “Vamos nos aprofundar, através desta leitura, no conhecimento de um grande projeto de nação elaborado e pretendido pelo próprio Deus e descobrir qual é a nossa responsabilidade neste processo.”1414. Edir Macedo e Carlos Oliveira, Plano de Poder – Deus, os Cristãos e a Política (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008).

Na obra, ele afirma ainda que Deus teve como pretensão a formação de uma grande nação e conclama os evangélicos à mobilização político-partidária. Segundo Macedo, é um plano divino tornar o Brasil uma nação governada por evangélicos: “Desde o início de tudo Ele nos esclarece de sua intenção de estadista e de formação de uma grande nação.”1515. Ibid. A partir dessa narrativa calcada em frases e histórias bíblicas transportadas para a contemporaneidade, Macedo constrói um aparato de argumentos que justificam e reclamam a transformação do Brasil numa “nação evangélica” regida por valores e princípios cristãos.

Essa virada no comportamento das lideranças evangélicas pentecostais se dá em meados da década de 1980. Em 1986 muitos líderes abandonaram o discurso de que a política era ambiente pecaminoso e de que não convinha ao cristão se envolver nela, passando a apoiar candidaturas para o Congresso da Constituinte com o jargão “irmão vota em irmão” para assim eleger representantes de suas igrejas que defendessem seus valores religiosos na Constituição Federal que estava por ser escrita.

Após aquelas eleições, a bancada evangélica teve sua primeira formação, com 33 parlamentares no Congresso Nacional.1616. Ari Pedro Oro e Marcelo Tadvald, “Consideraciones sobre el Campo Evangélico Braliseño,” Revista Nueva Sociedad 280 (2019): 64. Desde então, a representação dos evangélicos cresce cada vez mais, e a relação entre líderes evangélicos e representantes centrais do Poder Executivo vem se estreitando. Em 2009, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva cedeu à pressão da bancada evangélica e promoveu mudanças no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), retirando trechos que previam o apoio a projetos de lei para descriminalização do aborto e a criação de mecanismo para proibir símbolos religiosos em locais públicos.1717. Nathalia Passarinho, “Presidente Altera Trechos Polêmicos do Plano de Direitos Humanos.” G1, 13 de maio de 2010, acesso em 19 de julho de 2019, http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/05/presidente-altera-trechos-polemicos-do-plano-de-direitos-humanos.html.

Em 2011 Edir Macedo participou da posse da então presidenta Dilma Rousseff,1818. “Bispo Edir Macedo Participa da Posse de Dilma Rousseff com Hillary Clinton e Hugo Chaves. Assista,” Gospel +, 2 de janeiro de 2011, acesso em 19 de julho de 2019, https://noticias.gospelmais.com.br/bispo-edir-macedo-participa-da-posse-de-dilma-rousseff-com-hillary-clinton-e-hugo-chaves-assista.html. que em 2014 estaria presente na inauguração do Templo de Salomão,1919. Gustavo Uribe e José Marques, “Inauguração de Templo da Igreja Universal Reuniu Petistas e Tucanos.” Folha de S.Paulo, 1 de agosto de 2014, acesso em 19 de julho de 2019, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1494128-inauguracao-de-tempo-da-igreja-universal-reuniu-petistas-e-tucanos.shtml. atual sede da IURD na cidade de São Paulo. Este templo é uma imponente obra arquitetônica, com 74 mil m² de área construída, ocupando um quarteirão inteiro, e altura equivalente a um prédio de 18 andares, além de possuir um memorial com a história do templo original de Salomão destruído em 586 a.C. Ademais, a construção é uma representação física importante do poderio econômico e midiático por trás dessa Igreja.

Bolsonaro, por sua vez, comunica-se com esse público, angariando votos, ao incorporar em sua fala valores cristãos em defesa da família, da moral e dos bons costumes e ao receber apoio de líderes evangélicos como Edir Macedo, Silas Malafaia e outros, utilizando a retórica cristã ao citar versículos bíblicos em seus discursos e divulgar como slogan de campanha a frase “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.

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2. O decreto de armas: Um projeto de governo para a (in)segurança pública

O sistema político do Brasil é bicameral, composto pela Câmara de Deputados, com 513 membros, e o Senado Federal, com 81 senadores. É comum as duas categorias se agruparem em frentes e blocos parlamentares e bancadas temáticas que congregam políticos de diferentes partidos com ideais, crenças e objetivos em comum.

A Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional2020. A Frente Parlamentar Mista é o modo pelo qual as bancadas temáticas foram institucionalizadas e seu regulamento está previsto no “Ato da Mesa nº 69 de 10/11/2005,” Câmara dos Deputados, 10 de novembro de 2005, acesso em 15 de junho de 2019, https://www2.camara.leg.br/legin/int/atomes/2005/atodamesa-69-10-novembro-2005-539350-publicacaooriginal-37793-cd-mesa.html. Para a sua criação são necessárias 198 assinaturas de parlamentares signatários. No entanto, isso não significa que todos necessariamente precisam ser atuantes nessa frente. De acordo com pesquisas pós-eleições, a bancada evangélica tem hoje aproximadamente 100 parlamentares atuantes: Luisa Marini e Ana Luiza de Carvalho, “Renovada, Bancada Evangélica Chega com Mais Força no Próximo Congresso.” Congresso em Foco, 19 de outubro de 2019, acesso em 15 de junho de 2019, https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/renovada-bancada-evangelica-chega-com-mais-forca-no-proximo-congresso/. brasileiro conta oficialmente com 195 deputados e 8 senadores signatários,2121. “Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional,” Câmara dos Deputados, 17 de abril de 2019, acesso em 15 de junho de 2019, https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=54010. um número bastante significativo se comparado a um universo de 594 parlamentares no total. Essa bancada, presidida pelo deputado federal Silas Câmara (PRB/AM), pastor evangélico da Assembleia de Deus, possui forte alinhamento com os projetos de governo de Jair Bolsonaro e está em sua base aliada no Congresso Nacional.

No dia 7 de maio de 2019, o presidente editou o decreto no. 9.785/2019,2222. “Decreto nº 9.785, de 7 de Maio de 2019,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 7 de maio de 2019, acesso em 15 de junho de 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9785.htm. que flexibilizou a posse e o porte de armas no Brasil. Além de ser um ato inconstitucional, na medida em que invadia a competência legislativa do Congresso Nacional, anteriormente, em 15 de janeiro de 2019, já havia sido publicado o decreto nº 9.685,2323. “Decreto nº 9.685, de 15 de Janeiro de 2019,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 15 de janeiro de 2019, acesso em 15 de junho de 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9685.htm. que alterava o decreto regulamentador do estatuto do desarmamento (decreto nº 5.123 de 21/07/2004). Sob o argumento de dar ao cidadão o direito de se defender, com este decreto o governo Bolsonaro transfere para o cidadão comum o ônus de garantir sua própria segurança, dever este que é, segundo a Constituição Federal,2424. A Constituição Federal nos Artigos. 6º e 144 atribui ao Estado de forma indelegável o dever de garantir segurança pública. atribuição legal do Estado.

De acordo com o Instituto Sou da Paz,2525. “Nota Pública: Decreto nº 9.797, de 21 de Maio de 2019,” Instituto Sou da Paz, 22 de maio de 2019, acesso em 15 de junho de 2019, http://www.soudapaz.org/noticia/nota-publica-decreto-no-9-797-de-21-de-maio-de-2019. a alteração mais gravosa apresentada no decreto é a ampliação das categorias profissionais entre aquelas que “necessitam” portar armas. Entre elas se destacam políticos com mandatos eletivos, moradores de área rural, caminhoneiros, jornalistas, atiradores ou colecionadores de armas, advogados e conselheiros tutelares, entre outros. Por esta medida, o número de pessoas que potencialmente portariam armas nas ruas, nos locais de trabalho e em espaços públicos aumentou substantivamente de acordo com as estimativas:2626. Dados levantados pelo Instituto Sou da Paz, divulgados no portal G1: Tahiane Stochero, “Decreto que Facilitou Porte Permite Compra de Armas Antes Restritas a Polícia e Exército; Veja Quais.” G1, 10 de maio de 2019, acesso em 15 de junho de 2019, https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/05/10/decreto-que-facilitou-porte-permite-compra-de-armas-antes-restritas-a-policia-e-exercito-veja-quais.ghtml. 492.498 caminhoneiros autônomos;2727. “1.2.3.Autônomos,” Anuário CNT do Transporte, 2018, acesso em 15 de junho de 2019, http://anuariodotransporte.cnt.org.br/2018/Rodoviario/1-2-3-/Aut%C3%B4nomos. cerca de 18,6 milhões de residentes em áreas rurais;2828. “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD,” IBGE, 2015, acesso em 15 de junho de 2019, https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html?=&t=resultados. e 30 mil conselheiros tutelares em todo o país.2929. “Conselhos Tutelares Têm Importância Central na Defesa de Crianças e Adolescentes,” Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 30 de maio de 2018, acesso em 15 de junho de 2019, https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/maio/conselhos-tutelares-tem-importancia-central-na-defesa-de-criancas-e-adolescentes.

2.1 O incongruente combate à morte com armas

Em um país com altos índices de violência e desigualdade como o Brasil, o referido decreto pode impulsionar mais mortes por homicídio, potencializando uma crise ao contribuir para o aumento dos conflitos por disputa de terras envolvendo trabalhadores rurais, comunidades quilombolas e indígenas, fazendeiros e os representantes do agronegócio. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, em 2017 registrou-se o maior número de mortos em conflitos no campo desde 2003:3030. Cristiane Passos, “Assassinatos no Campo Batem Novo Recorde e Atingem Maior Número Desde 2003.” Comissão Pastoral da Terra, 16 de abril de 2018, acesso em 15 de junho de 2019, https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/4319-assassinatos-no-campo-batem-novo-recorde-e-atingem-maior-numero-desde-2003. 71 pessoas morreram, sendo no Norte do país, nos Estados do Pará (21) e do Amazonas (17), o maior número de mortos.

O Atlas da Violência de 2019,3131. “Atlas da Violência 2019,” Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019, acesso em 15 de junho de 2019, http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelou que em 2017 o Brasil alcançara o maior nível por letalidade violenta de sua história. Foram 65.602 homicídios, um crescimento de quase 48% em apenas uma década (2007-2017). Deste número, 35.783 eram jovens entre 15 e 29 anos, um dado alarmante que aponta para a morte prematura de uma “juventude perdida”.3232. Ibid., 25. Verificou-se também expressivo aumento de 30,7% no número de homicídios de mulheres durante a década analisada, o que, segundo a pesquisa, corresponde a 13 assassinatos por dia em 2017, grande parte deles cometidos no ambiente doméstico e na “segurança” de seus lares.

Por fim, constatou-se também que, no ano analisado, 75,5% das vítimas de homicídios foram pessoas negras, indicando um aumento na desigualdade de letalidade racial no Brasil. Segundo o Ipea, no período de 2007 a 2017, a taxa de mortes de negros cresceu 33,1%; já a de não negros apresentou um pequeno aumento de 3,3%. Analisando apenas a variação no último ano, enquanto a taxa de mortes de não negros apresentou relativa estabilidade, com redução de 0,3%, a de negros cresceu 7,2%. O que significa que o índice de letalidade da população negra vem crescendo gradativamente a cada ano de acordo com os dados da década analisada, ao passo que o índice de mortes entre não negros se mantém estável. Em suma, os dados revelam uma política de morte que tem como alvo principal a população negra. Cruzando essas estatísticas com os dados de perfil da população evangélica citados anteriormente, em sua maioria pobre, preta e periférica, verifica-se um paradoxo em que a multiplicação das opressões emerge justamente das classes mais oprimidas.

Segundo a pesquisa World Health Statistics 2018,3333. “World Health Statistics 2018: Monitoring Health for the SDGs, Sustainable Development Goals,” World Health Organization, 2018, acesso em 15 de junho de 2019, https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/272596/9789241565585-eng.pdf?ua=1. publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em maio daquele ano, o Brasil possui a sétima maior taxa de homicídios das Américas, com um indicador de 31,3 mortos para cada 100 mil habitantes.

A partir desses dados, parece-nos um contrassenso promover o armamento quase irrestrito da população como política de segurança pública. Além de abrir para milhões de pessoas a possibilidade de portar armas, os decretos em questão (nºs 9.785/2019 e 9.797/2019) também aumentam a quantidade de armas por cidadão de 1 para 5, ampliam de 5 para 10 anos o prazo de validade do porte e ainda elevam de 400 para 1.620 joules a potência de energia cinética das armas3434. A energia cinética é calculada de acordo com o peso da munição e de sua velocidade na saída do cano, variando dependendo do prolongamento do cano da arma e de outros fatores, como o próprio tipo de munição utilizada. permitidas para o cidadão comum, o que significa que a população poderá possuir e portar armas antes proibidas, tais como 9 mm, .44 Magnum, espingarda calibre 12 cano serrado semiautomática e fuzis do tipo T4 que não dispare rajadas.

Nesse contexto, foi noticiado3535. “Decreto das Armas Permite que Cidadãos Tenham Fuzil em Casa,” GloboPlay, 20 de maio de 2019, acesso em 17 de junho de 2019, https://globoplay.globo.com/v/7630198/. que a fabricante de armas Taurus havia enviado comunicado ao mercado financeiro3636. “Taurus Armas S/A – Comunicado ao Mercado,” Companhias Abertas Bovespa, 8 de maio de 2019, acesso em 15 de junho de 2019, http://bit.ly/2XmNhty. em 8 de maio de 2019 informando estar pronta para vender fuzis do tipo T4 para a população e ter recebido mais de dois mil pedidos que poderiam ser atendidos em até três dias. A comoção nacional despertou diversos setores da sociedade e resultou em uma reação por parte do Congresso Nacional que culminou na propositura de ações judiciais de inconstitucionalidade de autoria de partidos políticos contrários ao decreto, conforme quadro abaixo:

Ação Autor Relator Decreto questionado
ADI 6119 PSB Min. Edson Fachin Decreto nº. 9.685, de 15.01.2019
ADI 6134 PSOL Min. Rosa Weber Decreto nº. 9.785, de 07.05.2019
ADI 6139 PSB Min. Edson Fachin Decreto nº. 9.785, de 07.05.2019
ADPF 581 REDE Min. Rosa Weber Decreto nº. 9.785, de 07.05.2019

Sob pressão, o governo se manifestou em nota através do Ministério da Defesa negando a possibilidade de aquisição de fuzis pelo cidadão comum.

Com o argumento de corrigir tais inconsistências, o Presidente da República editou o decreto no. 9.797 de 21 de maio de 2019, alterando alguns pontos do decreto de 9.785 de 7 de maio. Segundo especialistas,3737. “Nota Pública: Decreto nº 9.797, de 21 de Maio de 2019,” Instituto Sou da Paz, 2019. este novo decreto não resolve as inconstitucionalidades do anterior, mas amplia ainda mais o rol de categorias profissionais e mantém a potência cinética permitida por arma de 1.620 joules.

Assim, a questão que se levanta é como conciliar, à luz dos princípios cristãos, o uso de armas e o amor ao próximo ou, ainda, a ideia, tão cara ao cristianismo, de que todos os seres humanos são feitos à imagem e semelhança de Deus.

Observa-se, porém, a construção de uma nova narrativa que, personificada na pessoa do “capitão Bolsonaro”, traz para o campo da materialidade elementos da teologia da guerra espiritual,3838. Oro e Tadvald, “Consideraciones sobre el Campo Evangélico Braliseño,” 57. Segundo os autores, a Teologia da Guerra Espiritual sustenta que o mundo é um campo de batalha entre as forças do bem contra o mal, crendo que as forças do mal se apoderam dos fiéis provocando desgraças e todos os problemas, o que implica em atos de exorcismo e cultos de libertação por parte dos líderes religiosos para expulsar os demônios. até então circunscritos ao campo da espiritualidade. Esse novo discurso justifica tais políticas de segurança pública pois tem por finalidade armar o “cidadão de bem” na luta contra “os maus”.

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3. A bancada evangélica e os direitos humanos: “Bandido bom é bandido morto”?

A bancada evangélica despontou como principal alvo do governo na busca por apoio ao decreto de armas na Câmara. Com 195 parlamentares signatários, os votos dessa bancada seriam determinantes para a aprovação ou rejeição total do ato. A líder do Governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann, anunciou em entrevista que tentaria obter o apoio de parte da bancada evangélica ao decreto e que se algum ponto específico causasse incômodo isso seria debatido para se costurar um consenso e aprová-lo.3939. Augusto Fernandes, “Governo quer Apoio da Bancada Evangélica na Votação do Decreto das Armas.” Correio Braziliense, 20 de junho de 2019, acesso em 21 de junho de 2019, https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/06/20/interna_politica,764370/governo-quer-apoio-da-bancada-evangelica-na-votacao-do-decreto-de-arma.shtml. Frisa-se que a deputada também é membro da Frente Parlamentar Evangélica.

Enquanto este artigo era escrito, os decretos das armas passaram pelo crivo do Congresso Nacional4040. Após edição do decreto no. 9.867/2019 foram apresentados por um grupo de senadores sete Projetos de Decreto Legislativo visando anular o decreto e revogar seus efeitos. “Projeto de Decreto Legislativo n° 233, de 2019,” Senado Federal, 18 de junho de 2019, acesso em 21 de junho de 2019, https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136635. e no dia 18 de junho de 2019 foi apreciado e sustado pelo Senado Federal. Por 47 a 28 votos4141. Olavo Soares e Giorgio Dal Molin, “Senado Derruba Decreto do Porte de Armas de Jair Bolsonaro.” Gazeta do Povo, 18 de junho de 2019, acesso em 21 de junho de 2019, https://www.gazetadopovo.com.br/republica/decreto-porte-armas-derrubada-senado/. os senadores decidiram pela anulação do ato, o que representou uma grande derrota para o governo. Contudo, como o sistema político brasileiro é bicameral, o decreto deveria tramitar também na Câmara dos Deputados, onde o plenário de 513 representantes votaria pela manutenção ou anulação definitiva deste instrumento.

O deputado Silas Câmara (PRB-AM), presidente da bancada, comunicou, em nota, que a frente parlamentar ainda “não tem posição oficial sobre o referido decreto presidencial, e o assunto jamais foi debatido pelos membros da frente”. De qualquer forma, ele ressaltou que “é da tradição protestante a defesa cabal da vida e da propriedade privada como valores intrínsecos de uma sociedade verdadeiramente democrática”. Além disso, complementou que “[p]ortanto, se impõe a criação de mecanismos que possibilitem ao cidadão de bem efetivamente proteger seus bens, sua vida e a de seus familiares.”4242. Fernandes, “Governo quer Apoio da Bancada Evangélica...,” 2019.

Importante ressaltar que o atual governo brasileiro, declaradamente de direita, chegou ao poder buscando estrategicamente emplacar uma narrativa pública sobre o que seriam, segundo sua concepção, direitos humanos. Jargões como “direitos humanos para humanos direitos” ou “bandido bom é bandido morto” tornaram-se comuns nas falas de alguns parlamentares, representantes do Poder Executivo e de muitos militares próximos ao presidente. Alinhando-se a lógica dessa narrativa ao argumento de que o cidadão deve ter o direito de proteger sua própria vida portando armas, a defesa do decreto torna-se palatável e justificável para alguns parlamentares evangélicos.

Tal fato se verifica ao analisarmos os votos favoráveis no Senado Federal. Dos oito senadores que fazem parte da Frente Evangélica,4343. “Frente Parlamentar Evangélica...,” Câmara dos Deputados, 2019. sete votaram a favor da manutenção do decreto de armas,4444. “Saiba Como Votaram os Senadores no Veto ao Decreto de Armas de Bolsonaro,” Veja, 18 de junho de 2019, acesso em 21 de junho de 2019, https://veja.abril.com.br/politica/saiba-como-votaram-os-senadores-no-veto-ao-decreto-de-armas-de-bolsonaro/. sendo eles: Arolde de Oliveira (PSD-RJ), Izalci Lucas (PSDB-DF), Juíza Selma (PSL-MT), Luiz do Carmos (MDB-GO), Marcos Rogério (DEM-RO), Vanderlan Cardoso (PP-GO) e Zequinha Marinho (PSC-PA).

Nos discursos realizados em plenário, o Senador Luiz do Carmo causou comoção ao relatar o assassinato de sua filha Michele durante um assalto.4545. “Plenário - Sessão Deliberativa - TV Senado ao vivo - 18/06/2019,” vídeo do YouTube, TV Senado, transmitido ao vivo em 18 de junho de 2019, acesso em 21 de junho de 2019, https://www.youtube.com/watch?v=8bqW7Y5CcRs&t=3935s. Evangélico da Assembleia de Deus há mais de 30 anos,4646. “Perfil Biográfico de Luiz Carlos do Carmo – PMDB,” Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, 2007, acesso em 24 de junho de 2019, https://portal.al.go.leg.br/deputado/perfil/deputado/1240. o senador defendeu a ideia de que sua filha poderia ter escapado com vida se tivesse reagido ao assalto utilizando uma arma de fogo.

Outro pastor evangélico bastante influente que se posicionou a favor do decreto de armas foi o deputado federal Pastor Marcos Feliciano (PODE/SP). No dia 13 de junho, Feliciano participou de uma transmissão on-line ao vivo ao lado do presidente Bolsonaro defendendo a validade dos decretos presidenciais. Segundo ele, “Na América não tem muros nas casas. As pessoas perguntam: ‘Por que não tem muros?’ Porque ninguém tem coragem de entrar na casa do americano, porque sabe que todo americano tem uma arma”.4747. “‘Não Há Muros nos EUA Porque Todo Americano Tem uma Arma’, diz Feliciano,” Último Segundo, 14 de junho de 2019, acesso em 30 de junho de 2019, https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-06-14/nao-ha-muros-nos-eua-porque-todo-americano-tem-uma-arma-diz-feliciano.html. Feliciano é deputado federal já no terceiro mandato, pastor da Assembleia de Deus Ministério Belém e um pregador muito respeitado no meio cristão brasileiro.

Todavia, há divergências nos posicionamentos de parlamentares da bancada evangélica. Um exemplo é o Pastor Sargento Isidoro (AVANTE/BA), deputado federal mais votado no Estado da Bahia e membro da bancada evangélica. O deputado fez uma campanha ferrenha no Congresso contra a aprovação do decreto, empunhando cartazes com dizeres como “disse Jesus: amai-vos e não armai-vos”, “armas não, educação sim” e “menos armas, mais livros”, peregrinando pelas comissões da Câmara e do Senado,4848. “Pastor Isidório Faz Intervenção na Câmara Contra Liberação de Porte de Armas,” Mídia Ninja, 9 de maio de 2019, acesso em 5 de julho de 2019, http://midianinja.org/news/pastor-isidorio-faz-intervencao-na-camara-contra-liberacao-de-porte-de-armas/. conforme a imagem a seguir.

Foto: Moreira Mariz/Agência Senado.

O deputado Sóstenes Cavalcante (DEM/RJ) é outra voz dissonante na bancada. Contrário ao decreto, o parlamentar disse que “[e]stou conversando com vários deputados, e já temos vários que vão apoiar sim o decreto legislativo, desde que não seja apresentado por partidos de esquerda. Não apoiamos nada do PT. Se for do PT não terá nosso apoio”.4949. Decreto Legislativo é o instrumento constitucionalmente previsto para sustar os efeitos de atos normativos do Presidente da República que excedam sua competência. Encontra previsão no Artigo 49, V da Constituição Federal., 5050. Bruno Góes e Natália Portinari, “Evangélicos da Câmara Articulam para Derrubar Decreto de Armas de Bolsonaro.” O Globo, 9 de maio de 2019, acesso em 5 de julho de 2019, https://oglobo.globo.com/brasil/evangelicos-da-camara-articulam-para-derrubar-decreto-de-armas-de-bolsonaro-23651511. Sóstenes é pastor evangélico ligado à Assembleia de Deus Ministério Vitória em Cristo, sediada no Estado do Rio de Janeiro e comandada pelo pastor Silas Malafaia, considerado um dos evangélicos mais influentes do país.

Foto: Mídia Ninja

Em contrapartida, a deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ), evangélica da Assembleia de Deus desde 1968, em artigo de sua autoria argumenta que: “‘Armar o cidadão de bem para combater a violência’ é uma ideia simples, direta, mas totalmente ilusória, que sobrevive se alimentando da incompetência dos governos e da demagogia dos políticos.”5151. Benedita da Silva, “Armas Matam!” Brasil 247, 16 de janeiro de 2019, acesso em 5 de julho de 2019, https://www.brasil247.com/blog/armas-matam. Benedita, que apresenta oposição ferrenha aos decretos, está na carreira política desde 1982 e sempre foi filiada ao Partido dos Trabalhadores. Ela chegou ao Congresso Nacional no cargo de deputada federal em 1987, tendo ajudado a fundar a bancada evangélica e participado da Constituinte de 1988. Ao contrário do perfil conservador mais comum nessa bancada, Benedita é feminista, ativista do movimento negro e se declara defensora das minorias e de pautas progressistas.

Tradicionalmente a bancada evangélica atua em pautas que tangenciam o campo “da moral e dos bons costumes”, em geral defendendo posições conservadoras. São contrários à legalização do aborto em qualquer situação e do casamento homoafetivo, além de hostilizarem o debate de gênero, contrariando a agenda dos direitos humanos, principalmente aqueles ligados aos direitos e às liberdades de “minorias” sociais e políticas.

Contudo, é nas políticas de segurança pública que essa bancada tem assumido posições mais punitivas, haja vista na legislatura anterior (2015-2018) a formação da bancada “BBB” (bíblia, bala e boi), formada por parlamentares das alas evangélica, armamentista e ruralista. Esse alinhamento envolvia a adoção de um sistema de troca de votos conjuntos em pautas de interesse a qualquer um desses grupos, e a volta ao debate público de temas como a redução da maioridade penal, enquadramento do aborto como crime hediondo e a revogação do Estatuto do Desarmamento.

O que se verifica nesses meses iniciais da nova legislatura brasileira é que parte da bancada evangélica identificou no decreto de armas a possibilidade de defender um posicionamento punitivista na forma de pensar as políticas de segurança pública. Não obstante, frisa-se que a posse e o porte de armas como medidas indiscriminadas de proteção, em alguma medida, confrontam os princípios de amor ao próximo, perdão e valorização da vida enquanto criação divina.

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4. Novos decretos de armas

Enquanto este artigo era escrito e em paralelo às pesquisas sobre os posicionamentos dos parlamentares, os decretos apresentados na introdução como objetos da presente análise foram revogados por outros quatro novos decretos publicados em 25 de junho de 2019.

O novo ato presidencial aconteceu um dia antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar a constitucionalidade dos atos normativos através das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e da Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) interpostas pelos partidos políticos REDE, PSB e PSOL.

Valendo-se de uma estratégia jurídica, o presidente Bolsonaro editou novos decretos (nºs 9.844,5252. “Decreto nº 9.844, de 25 de Junho de 2019,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 25 de junho de 2019, acesso em 7 de julho de 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9844.htm. 9845,5353. “Decreto nº 9.845, de 25 de Junho de 2019,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 25 de junho de 2019, acesso em 7 de julho de 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9845.htm. 98465454. “Decreto nº 9.846, de 25 de Junho de 2019,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 25 de junho de 2019, acesso em 7 de julho de 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9846.htm. e 98475555. “Decreto nº 9.847, de 25 de Junho de 2019,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 25 de junho de 2019, acesso em 7 de julho de 2019, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9847.htm.) revogando os anteriores, porém, mantendo quase na íntegra seus conteúdos. Dessa maneira, o presidente inviabilizou o julgamento das ações de inconstitucionalidade ajuizadas no STF, que, em razão da perda do objeto, foram retiradas de pauta. Tal movimento não implicava uma mudança na política armamentista do governo, mas apenas o uso de uma manobra jurídica para driblar os mecanismos de controle de constitucionalidade previstos no ordenamento jurídico brasileiro.

A tabela a seguir sintetiza todos os atos normativos do presidente nos seis primeiros meses de governo no que se refere à formulação de políticas de segurança pública através do armamento da população:

Decreto nº Data Revogado por
9.685 15.01.2019 9.785
9.785 07.05.2019 9.844
9.797 21.05.2019 9.847
9.844 25.06.2019 9.847
9.845 25.06.2019
9.846 25.06.2019
9.847 25.06.2019

Para além das questões aqui analisadas, a sucessiva edição de decretos em tão curto espaço de tempo por parte do Poder Executivo, sobre tema que constitucionalmente é de competência do Poder Legislativo, sinaliza a fragilidade da democracia brasileira e indica possibilidades de futuras rupturas e um esgarçamento das relações entre os três poderes da União – Executivo, Legislativo e Judiciário.

Com apenas 200 dias de governo, o Presidente da República editou 237 decretos,5656. Lucas Salomão, “Com Média de 1,3 por Dia, Governo Bolsonaro Só Fez Menos Decretos que Collor nos 6 Primeiros Meses.” G1, 29 de junho de 2019, acesso em 20 de julho de 2019, https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/29/com-media-de-13-decreto-por-dia-governo-bolsonaro-so-editou-menos-que-collor-em-seis-meses.ghtml. muitos dos quais foram alvos de projetos de decreto legislativo (PDLs) por parte do parlamento cujo objetivo era sustar seus efeitos. Em um sistema de governo com o presidencialismo de coalizão, como é o caso do Brasil, a edição de sucessivos decretos, em especial sobre temas de competência do Legislativo e que, por consequência, exigem o acionamento do Judiciário para decidir sobre a constitucionalidade dos atos, desgasta as relações entre os poderes e vulnerabiliza a democracia.

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5. O advocacy em direitos humanos e seus desafios

As organizações da sociedade civil que fazem advocacy no Congresso Nacional brasileiro na defesa dos direitos humanos e em prol da construção de políticas públicas, em especial no tocante às questões de segurança pública, como é o caso da Conectas, têm diante de si a tarefa desafiadora de dialogar com a bancada evangélica e pensar em construir estratégias de atuação no parlamento diante da especificidade e significativa representação deste grupo. Contudo, as movimentações políticas identificadas e os discursos apresentados demonstram que essa bancada não é uníssona em posicionamentos na área de segurança pública.

A partir do momento em que tomamos conhecimento da complexidade do campo religioso, decorrente tanto da heterogeneidade dos seus atores quanto dos seus discursos e interpretações, torna-se possível identificar as fissuras e até mesmo as contradições que se abrem como possíveis canais de diálogo. Se, por um lado, essa bancada é tida como representante do conservadorismo e punitivismo, por outro, há parlamentares evangélicos que evidenciam em seus discursos uma ruptura com essa postura.

A pluralidade partidária dentro da bancada também é um indicativo de possíveis diálogos, não estando restrita a partidos de apenas um espectro político. Embora haja uma maior representação de parlamentares de partidos de direita, centro-direita e centro, há também representações de partidos que se identificam como pertencentes ao campo da esquerda e centro-esquerda. Isso sinaliza que os evangélicos não cabem em apenas um rótulo, pois assim como se detecta essa heterogeneidade entre os evangélicos que estão no parlamento, é possível também reconhecê-la nas milhares de igrejas evangélicas das mais diversas denominações que se proliferaram Brasil afora.

A representação dos evangélicos no Congresso ainda tem sua maioria ligada às Igrejas Universal do Reino de Deus e Assembleia de Deus, no entanto, há oscilações na atuação que podem ser exploradas nas estratégias da sociedade civil. Organizações e indivíduos que atuam na defesa dos direitos humanos não podem ignorar tampouco menosprezar a população evangélica, pois ela tem demonstrado ser organizada, plural, consistente e capaz de decidir um pleito eletivo, definindo consequentemente o futuro das políticas adotadas e influenciando a sua implementação.

No caso dos decretos de armas é importante frisar que, embora o Parlamento, por meio do Senado Federal, tenha se posicionado contrariamente aos instrumentos, o argumento central dos discursos girou em torno da inconstitucionalidade formal dos atos, e não da inconsistência e ineficácia dessa política como uma política de segurança pública.

Em 25 de junho foi apresentado um projeto de lei (no. 3.715/2019)5757. Tramitação do “Projeto de Lei no. 3715, de 2019,” Senado Federal, 20 de junho de 2019, acesso em 20 de julho de 2019, https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137430. que amplia o porte de armas em propriedades rurais, o qual foi aprovado no plenário do Senado Federal no dia seguinte. Na mesma sessão foi aprovado outro projeto de lei (PLS no. 224/2017)5858. Tramitação do “Projeto de Lei no Senado no. 224, de 2017,” Senado Federal, 26 de junho de 2019, acesso em 20 de julho de 2019, https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/130029. que diminui a idade mínima de 25 para 21 anos para aquisição de armas de fogo por moradores dessas áreas rurais. Na sequência ambos os projetos seguiriam para tramitação na Câmara do Deputados. Assim, a rapidez com que os projetos são aprovados aponta para um Senado Federal punitivista que, em sua maioria, tem alinhamento ideológico com o Presidente da República no que tange a segurança pública.

Por fim, a estratégia jurídica usada por Bolsonaro ao editar sete decretos sobre armas em tão curto tempo nos coloca, enquanto defensores de direitos humanos, em uma posição bastante vulnerável na execução do trabalho de advocacy perante o Parlamento nacional. Isto porque as manobras do presidente abalam o princípio da segurança jurídica, tornando difícil saber contra qual ato estamos lutando. Este tem sido um dos maiores desafios para o advocacy na atual legislatura, pois em um ambiente de democracia instável grandes retrocessos tendem a acontecer.

Como organização da sociedade civil que trabalha há 18 anos na defesa de direitos humanos, a Conectas busca trazer ao conhecimento da comunidade internacional as vulnerabilidades instaladas na democracia brasileira a partir do governo Bolsonaro, que conta com apoio da bancada evangélica. A forma com que o presidente faz política e governa restringe, consequentemente, as possibilidades de atuação da sociedade civil, pois em vários aspectos desrespeita o processo legislativo e dificulta as estratégias de resistência e defesa de direitos.

A despeito do contexto atual nada favorável ao exercício do advocacy, a sociedade civil brasileira seguirá resistindo e desenvolvendo novas estratégias de atuação, bem como denunciando as violações de direitos humanos.

Silvia Virginia Silva de Souza - Brasil

Silvia Virginia Silva de Souza é advogada, assessora de advocacy da Conectas Direitos Humanos e pós-graduanda em Direitos Humanos, Diversidade e Violência pela Universidade Federal do ABC (UFABC)

Recebido em junho de 2019.

Original em português.