Dossiê SUR sobre drogas e direitos humanos

Avanços na política de drogas no Uruguai

Milton Romani Gerner

Um dos líderes da política de drogas no Uruguai expõe razões e desafios para reformar as leis no país

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RESUMO

Em dezembro de 2013, o governo uruguaio aprovou a Lei 19.172, que permite a produção e a venda de maconha no país. A lei é resultado do compromisso do governo com uma política integral de drogas com perspectiva de direitos humanos e saúde pública. A partir da experiência do autor, o artigo apresenta uma visão geral dessa política no Uruguai.

Palavras-Chave

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O Uruguai é notícia no mundo por sua decisão de incorporar, no conjunto de suas políticas sociais, a regulamentação do mercado de maconha. Trata-se de uma decisão que é coerente com sua política integral em matéria de drogas, baseada em direitos humanos e saúde pública, com ênfase no fortalecimento da perspectiva de gênero.

Está sendo testado e comprovado que a abordagem que toma como eixo a saúde pública e os direitos é mais eficaz e humana do que a proibicionista e punitiva.

Começa-se a formar um consenso a nível internacional em reconhecer que “a guerra às drogas” não tem sido bem sucedida e tem sido demonstrado que aumenta a violência e provoca mais danos do que as próprias drogas. A Cúpula de Chefes e Chefas de Estado das Américas, realizada em dezembro de 2012, em Cartagena das Índias, deu um mandato à Organização dos Estados Americanos (OEA) para elaborar um relatório sobre drogas nas Américas. O Relatório foi apresentado pelo Secretário-Geral na 43ª Assembléia Geral da OEA realizada em Antigua, Guatemala, e evidencia um passo significativo para abrir um debate necessário para a região e para o mundo.

Na última década, o Uruguai tem defendido uma perspectiva de direitos em diferentes organizações e fóruns internacionais, especialmente como Estado membro da Comissão de Narcóticos das Nações Unidas. Confirmamos isso na intervenção que realizamos em março de 2015, durante a 58ª Sessão em Viena, Áustria, em relação a acusações improcedentes do então presidente da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE).

“Começa-se a formar um consenso a nível internacional em reconhecer que ‘a guerra às drogas’ não tem sido bem sucedida”

Em 2008, ingressamos como membros plenos nessa Comissão composta por 52 países, órgão político que orienta as políticas de drogas em todo o mundo. Nesse mesmo ano promovemos um Projeto de Declaração de “integração adequada dos instrumentos de direitos humanos com a política de controle de drogas” (Resolução 51/1211. UNODC, Commission on Narcotic Drugs, Resolution 51/12, “Strengthening cooperation between the United Nations Office on Drugs and Crime and other United Nations entities for the promotion of human rights in the implementation of the international drug control treaties,” 2008, acesso em junho de 2015, https://www.unodc.org/documents/commissions/CND/Drug_Resolutions/2000-2009/2008/CND_Res-2008-12e.pdf.), co-patrocinado por Argentina, Bolívia, Suíça e União Europeia. Foi uma batalha política e diplomática de grande importância que demos naquele momento, e que foi duramente debatida.

Atualmente integramos um bloco latino-americano muito ativo, o qual se manifesta na OEA, CELAC, Mercosul e Unasul,22. Organização dos Estados Americanos, Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, Mercado Comum do Sul e União de Nações Sul-americanas, respectivamente. e demanda da comunidade internacional um debate franco, aberto, sem tabus ou exclusões, que incorpore todas perspectivas e admita a diversidade na unidade de ação; integrando uma perspectiva de saúde e inclusão social em novas abordagens. A Assembleia Geral Extraordinária das Nações Unidas que será realizada em Nova York em abril de 2016 (UNGASS 2016) instiga toda atenção e será, sem dúvida, um momento em que todas as agências da ONU fornecerão seu ponto de vista, e os Estados, em conjunto com a sociedade civil, terão a oportunidade de discutir novas abordagens e abrirão as portas para humanizar a política de drogas.

Com efeito, há atualmente uma corrente mundial que está exigindo uma mudança; e o Uruguai não é alheio a isso. Pelo contrário, defende o direito soberano de suas decisões, sendo exemplo de integridade e compromisso com os direitos em matéria de drogas. A violação de direitos humanos em nome da guerra às drogas é um tema inevitável. A criminalização da posse para consumo pessoal tem produzido unicamente prisões superlotadas, onde se viola o direito à saúde de pessoas que em todo o caso tem um vício. A comunidade internacional deve garantir uma proporcionalidade entre a pena e o problema de drogas. A pena de morte deve ser banida, especialmente para crimes relacionados com drogas. O direito de discutir com todas as agências – OMS, PNUD, ACNUDH, OIT33. Organização Mundial da Saúde, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e Organização Internacional do Trabalho, respectivamente.– é uma necessidade para ter uma visão ampla e não tendenciosa que limite nossa ação.

A regulamentação do mercado de cannabis é uma experiência que tem o Uruguai como líder, mas que está sendo desenvolvida com força em vários países, estados ou cidades. Isso responde à ideia de que a regulamentação atual, exercida pela proibição e o direito penal, é perversa e provoca danos, conduzindo os consumidores ao mercado ilícito.

Lembramos que nosso país começou a caminhar, a partir de 2006, em direção a uma estratégia diferente, baseada na regulamentação dos mercados tanto de tabaco como de maconha e álcool.

O pensamento estratégico de regular mercados vai muito além do controle de drogas, embora o controle de substâncias seja mais justificado. Essa regulamentação de mercados é um sistema de controle mais eficaz, que respeita os direitos humanos, protege a saúde pública e possibilita uma aproximação do Estado com as populações vulneráveis e usuários problemáticos de drogas.

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Bolívia teve sua experiência com a regulamentação do mercado de produção de folha de coca e com a erradicação socialmente consensual como forma eficiente e coerente com os direitos humanos. O desenvolvimento alternativo e preventivo de substitutos de culturas em vários países de nossa América é uma maneira de intervir no mercado ilícito e competir com produtos agrícolas. É intervir e regular mercados.

Em 2006, sob a primeira Presidência do Dr. Tabaré Vázquez, o Uruguai foi um líder na implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco e avançou na regulamentação do mesmo. A avaliação e benefícios para a saúde da população após a diminuição do consumo dessa substância demonstram de maneira contundente as virtudes de tal regulamentação. Estamos decididos a agir com firmeza para regular a produção, distribuição e consumo final do mercado de bebidas alcoólicas. Nossa abordagem é de redução dos danos e de construção-gestão compartilhada de riscos. Novamente, a partir de uma perspectiva de saúde pública e de direitos.

O governo anterior, presidido por José Mujica, aprovou em dezembro de 2013 a Lei N ° 19.172 que regulamenta a produção, distribuição e venda de cannabis, que avançou com seu decreto regulamentar e sua implementação. Também foram sancionados decretos regulamentares para a produção de cânhamo e para a utilização de cannabis para fins medicinais.

“Insistimos que não queremos ser modelo para ninguém. É uma experiência uruguaia e como tal avaliaremos em seu devido tempo”

Laboratórios para a produção e a geração de rastreabilidade que impedem o desvio já estão instalados, e foi criado o Instituto de Regulamentação e Controle da Cannabis (IRCCA), o qual realiza orientações e controle com o registro obrigatório e excludente de produtores domésticos e clubes de filiação.

Atualmente, estão sendo tomadas as medidas necessárias para a concessão de licenças a empresas que produzirão em terras estatais e realizarão a distribuição em farmácias com a criação de um software especial para registro de usuários, respeitando a identidade como dado sensível.

Foi formado e está em funcionamento um Comité Científico Consultivo, composto por notáveis e distintos acadêmicos e antigos Reitores de diversas faculdades, que organizou uma rede de consultas integrada por 119 especialistas nacionais e internacionais, e realiza o acompanhamento e a avaliação da aplicação dessa lei e do modelo regulatório. Esse grupo de especialistas está aberto a todos aqueles que consideram de interesse o seguimento dessa iniciativa.

Podemos reafirmar que a implementação do mercado regulamentado de cannabis continuará firme, tal como previsto, sem pressa, mas com garantias de que o sistema será eficaz, uma vez que temos empenhado nisso o prestígio internacional do país.

Insistimos que não queremos ser modelo para ninguém. É uma experiência uruguaia e como tal avaliaremos em seu devido tempo. Mas de fato reafirmamos nosso direito soberano de seguir esse novo caminho diferente do modelo mundial que tem prevalecido nas últimas décadas e que só fez crescer exponencialmente as atividades ilícitas e o consumo.

O controle de drogas, suas convenções e orientações políticas devem estar ao serviço do desenvolvimento humano, integral, sustentável, justo e equitativo. Esse é o paradigma que estrutura a nova estratégia mundial.

As convenções sobre o controle de drogas – Convenção Única sobre Entorpecentes (1961), Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (1971) e Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (1988) – não têm uma leitura rígida. De fato, existem várias interpretações flexíveis. Alguns fazem uma leitura mais repressiva, como aqueles que aplicam a pena de morte, até mesmo para delitos menores de drogas. Uma interpretação no sentido mais humano é coerente com o direito internacional dos direitos humanos, que como marco jurídico é uma fonte tão importante quanto são as Convenções.

O espírito das Convenções, afirmado categoricamente em seu preâmbulo, é de colaborar com a saúde e o bem-estar da humanidade; garantir o uso médico e científico de substâncias controladas; e também combater o tráfico ilícito de entorpecentes e o crime organizado. Estamos comprometidos com isso. Os mercados regulamentados já existentes são decisões soberanas dos Estados, com base em seu ordenamento interno. Eles perseguem os mesmos objetivos das Convenções e se inscrevem no direito internacional de direitos humanos. São, portanto, novas abordagens que devem ser incorporadas em um debate internacional e geral, ao qual nos comprometemos todos aqueles que trabalhamos no campo vasto do fenômeno complexo das drogas.

Milton Romani Gerner - Uruguai

Milton Romani Gerner é bacharel em psicologia. Foi Professor de Psicopatologia e do Programa de Extensão APEX Cerro da Universidad de la República (Uruguai). É militante político do Frente Amplio e integrou a Comissão de Defesa Nacional da mesma. Romani foi exilado na Argentina, é ativista de direitos humanos e colaborador do CELS. Foi Embaixador Itinerante para Drogas e Direitos Humanos, e Embaixador do Uruguai perante a OEA. É Secretário-Geral do Conselho Nacional de Drogas do Uruguai (2005, 2011, 2015).

Recebido em junho de 2015.

Esta é uma versão revisada e atualizada do artigo publicado originalmente em Intercambios Argentina em abril de 2015.
Original em espanhol. Traduzido por Akemi Kamimura.