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A atividade probatória perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos

Alberto Bovino

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RESUMO

Quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos demanda um Estado-parte em um procedimento contencioso perante a Corte Interamericana, a prova se torna uma questão central. Tanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos como o Regulamento da Corte se caracterizam por omitir o tratamento da atividade probatória. Por isso, a Corte tem abordado do ponto de vista da jurisprudência as particularidades de cada processo. Na jurisprudência encontraremos os seguintes aspectos referentes à atividade probatória: (a) particularidades da atividade probatória no sistema interamericano; (b) constituição da prova do caso; (c) ônus da prova; (d) regime de valoração probatório; e (e) padrões para demonstrar violações à Convenção. Diante das características peculiares dos casos de graves violações de direitos humanos, esse assunto é de crucial importância, e os casos apresentados à Corte têm levado em conta tais singularidades.

Palavras-Chave

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01

Quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos demanda um Estado-parte em um procedimento contencioso perante a Corte Interamericana, a prova torna-se uma questão central.1

A relevância das provas resulta manifesta se atentarmos aos capítulos de fatos e prova de qualquer sentença da Corte Interamericana.2  Em sua jurisprudência, a Corte Interamericana estabeleceu princípios e padrões sobre a atividade probatória. Diante das singularidades apresentadas pelo sistema desenvolvido, em sua maior parte orientado pela jurisprudência, consideramos que o assunto merece ser analisado.

Na jurisprudência da Corte encontraremos os seguintes aspectos referentes à atividade probatória: (a) singularidades da atividade probatória nos processos levados à Corte IDH; (b) constituição do acervo probatório de um caso concreto; (c) ônus da prova; (d) regime de valoração da prova; e (e) padrões probatórios para demonstrar a violação de direitos protegidos pela Convenção Americana.

O assunto é de crucial importância, em particular quando levamos em conta as singularidades dos casos de graves violações aos direitos humanos.

Singularidades

As especificidades do direito internacional dos direitos humanos podem ser apreciadas no desenvolvimento da jurisprudência da Corte Interamericana em matéria probatória. Como veremos, elas estruturam um sistema probatório com suas próprias características, conforme ficou assinalado:3

135. A Corte não pode ignorar a gravidade especial do fato de se atribuir a um Estado-parte na Convenção a acusação de ter executado ou tolerado em seu território uma prática de desaparecimentos. Isso obriga a Corte a aplicar uma valoração da prova que leve em conta esse extremo e que, sem prejuízo do já dito, seja capaz de criar a convicção da verdade dos fatos alegados. (Grifo nosso.)

Como vemos, a gravidade intrínseca de toda violação de direitos humanos é levada em conta como variável determinante do regime probatório. Por outro lado, a Corte IDH destacou, na mesma oportunidade:4

138. O processo perante a Corte, como tribunal internacional que é, apresenta particularidades e caráter próprios, e por isso não lhe são automaticamente aplicáveis todos os elementos dos processos perante tribunais domésticos.

139. Isto, que em geral é válido nos processos internacionais, é particularmente aplicável nos referentes à proteção dos direitos humanos.

140. Com efeito, a proteção internacional dos direitos humanos não deve ser confundida com a justiça penal. Os Estados não comparecem perante a Corte como réus de ação penal. O objetivo do direito internacional dos direitos humanos não é punir pessoas culpadas por violações, mas amparar as vítimas e procurar a reparação dos danos que lhes tiverem sido causados pelos Estados responsáveis por tais ações.

Em síntese: destaca-se a singularidade do direito internacional em geral e do direito internacional dos direitos humanos em particular; é feita a distinção entre direito penal e responsabilidade internacional; e é definida a matéria do direito internacional dos direitos humanos.

Tais circunstâncias precisam ser levadas em conta para compreender e regulamentar a atividade probatória em processos levados à Corte Interamericana:

70. Num tribunal internacional como a Corte, cujo fim é a proteção dos direitos humanos, o procedimento se reveste de particularidades próprias que o diferenciam de processos domésticos. O primeiro é menos formal e mais flexível, sem por isso deixar de atentar para a segurança jurídica e para o equilíbrio processual das partes.5

89. Com o fim de obter o maior número possível de provas, este Tribunal tem sido muito flexível na admissão e na valoração das mesmas, de acordo com as regras da lógica e com base na experiência. […] O procedimento estabelecido para os casos contenciosos perante a Corte Interamericana ostenta características próprias que o diferenciam do aplicável aos processos de direito doméstico, não estando o primeiro sujeito às formalidades próprias do segundo.6

Por outro lado, deve-se levar em conta que:

75. Finalmente, a Corte sustenta que
[p]ara estabelecer que se produziu uma violação dos direitos consagrados na Convenção não se requer determinar, como ocorre no direito penal doméstico, a culpabilidade de seus autores ou sua intenção. Tampouco é preciso identificar individualmente os agentes aos quais se atribuem os atos de violação. É suficiente demonstrar que houve apoio ou tolerância do poder público na infração aos direitos reconhecidos na Convenção. Além disso, também fica comprometida a responsabilidade internacional do Estado se este não realizar as atividades necessárias, de acordo com seu direito doméstico, para identificar e, se for o caso, punir os autores das violações.7

É por isso que podemos ler, no citado caso Paniagua Morales:

87. Igualmente, em relação aos senhores González Rivera e Corado Barrientos, a Corte considera que sua detenção e sua morte estão vinculadas a agentes do Estado, que sejam da G-2 (Inteligência Militar) ou da própria Guardia de Hacienda. Além disso, esse caso foi incluído nas investigações do relatório da Polícia Nacional que imputou responsabilidade aos agentes do Estado.

Até aqui vimos as singularidades da atividade probatória perante a Corte Interamericana. Estamos falando de graves violações a obrigações internacionais, de um procedimento peculiar que se caracteriza por sua informalidade e por alegadas diferenças em relação ao direito doméstico, sem ter como objetivo atribuir responsabilidade penal, mas sim conseguir a reparação das vítimas de violações dos direitos humanos.

Esse procedimento de proteção aos direitos humanos está regulamentado de maneira a permitir a obtenção da maior quantidade possível de elementos de prova, com o objetivo de determinar a verdade dos fatos. Nesse sentido, o único aspecto relevante a ser provado é o fato de a violação denunciada poder ser atribuída a um poder público, sem que seja preciso identificar um autor concreto.

02

A prova do caso

Embora um dos princípios da atividade probatória seja o do contraditório, e o procedimento perante a Corte IDH, regido por seu Regulamento, seja um processo que envolve partes, a prova valorada em cada caso concreto é incorporada de um modo muito específico.

Em primeiro lugar, o conjunto de elementos de convicção a ser incorporado a um caso concreto se integra com a prova oferecida pelo demandante e pelo demandado:8

84. O Artigo 44 do Regulamento assinala o momento processual oportuno para a apresentação e a admissão dos elementos de convicção, a saber:

1. As provas apresentadas pelas partes só serão admitidas caso sejam indicadas na demanda e em sua contestação e, se pertinente, na petição de exceções preliminares e na sua contestação.
[…]
3. Excepcionalmente, a Corte poderá admitir uma prova se alguma das partes alegar força maior, impedimento grave ou fatos ocorridos em momento distinto dos antes apontados, desde que se assegure à parte contrária o direito de defesa.
[…]

86. É importante assinalar que, em matéria probatória, rege o princípio do contraditório. Esse princípio é um dos fundamentos do Artigo 44 do Regulamento, que se refere à oportunidade em que a prova deve ser oferecida, com o objetivo de proporcionar igualdade entre as partes.

Assim, as partes oferecem sua prova respeitando o contraditório. No entanto, diante da especial natureza do direito internacional dos direitos humanos, a Corte Interamericana possui amplos poderes em relação à atividade probatória, já que pode exercer a faculdade de produzir e incorporar elementos de prova de ofício, isto é, sem o pedido de uma parte.9  Nesse sentido, o Artigo 45 do Regulamento da Corte dispõe:

A Corte poderá, em qualquer fase da causa:
1. Instruir-se, ex-officio, com toda prova que considere útil. De modo particular, poderá ouvir, na qualidade de testemunha, de perito ou por outro título, qualquer pessoa cujo testemunho, declaração ou opinião considere pertinente.

2. Requerer das partes o fornecimento de alguma prova que esteja ao alcance das mesmas ou de explicação ou declaração que, em seu entender, possa ser útil.

3. Solicitar a qualquer entidade, escritório, órgão ou autoridade de sua escolha que obtenha informação, que expresse uma opinião ou elabore um relatório ou parecer sobre determinado item. Enquanto a Corte não o autorizar, os respectivos documentos não serão publicados.

4. Incumbir um ou vários de seus membros de realizar qualquer medida de instrução, incluindo audiências de recebimento de prova, seja na sede da Corte ou fora desta.

Assim, por exemplo, a Corte decidiu pela incorporação extemporânea de certos documentos por parte do Estado: 10

112. […] Apesar de o Estado não ter feito manifestação alguma sobre as razões que motivaram a apresentação extemporânea desses elementos probatórios e não tenha apresentado, portanto, as circunstâncias excepcionais que justificariam sua aceitação pela Corte, esta estima que os mesmos constituem prova útil na medida em que contêm informação sobre os fatos examinados, e por isso os incorpora ao acervo probatório com base no Artigo 44.1 do Regulamento, e os valora como prova circunstancial dentro do acervo probatório, de acordo com o princípio da sana crítica.

Do mesmo modo, ficou disposto:11

71. Os documentos fornecidos pela Comissão durante a audiência pública foram exibidos extemporaneamente. A Corte sustentou que a exceção estabelecida no Artigo 43 do Regulamento é aplicável unicamente no caso de que a parte proponente alegue força maior, impedimento grave ou fatos supervenientes. No entanto, e apesar de a Comissão não ter apresentado as referidas circunstâncias nesse caso, a Corte os admite por considerá-los úteis para a avaliação dos fatos, de acordo com o disposto no Artigo 44.1 do Regulamento.

Em idêntico sentido, em relação a uma prova solicitada pelo tribunal, sustentou-se:12

58. […] os documentos trazidos durante a audiência pública realizada no caso, tanto as cópias dos documentos nacionais de identidade como as certidões de nascimento e de guarda provisória de Matías Emanuel e Tamara Florencia Bulacio, a Corte os agrega ao conjunto probatório como prova para melhor resolver, em conformidade com o Artigo 44 do Regulamento.

Além disso, cabe estipular o material probatório adicional que também pode ser valorado na hora de pronunciar a sentença:

98. O acervo probatório de um caso é único e indivisível e é formado pelas provas oferecidas durante todas as etapas do processo. Por essa razão, a prova documental apresentada pelo Estado e pela Comissão durante a fase de exceções preliminares faz parte do acervo probatório do presente caso.13

68. A Corte apreciará o valor probatório dos documentos, declarações e perícias apresentados por escrito ou realizados diante dela. As provas apresentadas durante todas as etapas do processo foram integradas a um mesmo acervo probatório, que é considerado como um todo.14

Esse princípio é evidente. Trata-se de prova incorporada na etapa contenciosa de audiências orais perante a Corte Interamericana, e é natural que tais elementos de convicção possam ser incorporados ao conjunto de elementos de prova a serem avaliados na sentença. O mesmo ocorreria se se tratasse de prova apresentada solicitando medidas provisórias.15

Por último, numa decisão pouco acertada que contribui para diluir o princípio político do imediatismo – típico princípio próprio do juízo oral e contraditório –, o inciso 2 do Artigo 44 do Regulamento da Corte permite incorporar ao processo em trâmite perante a Corte o seguinte: “As provas produzidas perante a Comissão poderão ser incorporadas ao processo, sempre que tiverem sido recebidas em procedimentos contraditórios, salvo se a Corte considerar indispensável repeti-las”.

Essa regra é perigosa, pois poderia atentar contra o imediatismo do procedimento perante a Corte Interamericana. Se levarmos em conta que, após a entrada em vigor do novo Regulamento, a Corte passou a ter muito mais casos do que antes, e que esse órgão pressiona as partes para que as testemunhas e os peritos dos casos apresentem sua declaração por escrito, em vez de prestar declaração em juízo, a regra analisada poderia aumentar a tendência a tornar escrito um procedimento que deveria ser inteiramente oral.16

Até aqui vimos o conjunto de elementos probatórios que integrará o material utilizado como fundamentação para estabelecer os fatos em disputa em um caso concreto. Vejamos agora as particularidades da atividade probatória no âmbito desse procedimento.

03

O ônus da prova

O ônus da prova dos fatos contidos na demanda fica a cargo da Comissão Interamericana,17  já que esta é a parte demandante:

128. Antes de examinar as provas recebidas, a Corte deve começar por precisar algumas questões relacionadas com o ônus da prova e com os critérios gerais que orientam sua valoração e a determinação dos fatos no presente processo.

129. Dado que a Comissão é quem acusa o governo pelo desaparecimento de Saúl Godínez, a ela corresponde, em princípio, o ônus da prova dos fatos em que sua demanda se baseia.18

No entanto, diversas circunstâncias atenuam o peso da responsabilidade pelo ônus da prova. Em primeiro lugar, há uma limitação das possíveis defesas do Estado demandado. Em um caso peruano no qual desapareceram vários internos de uma prisão durante um motim, a Corte disse:19

65. A Corte considera que não corresponde à Comissão demonstrar o paradeiro das três pessoas a que se refere este processo, mas que, devido à circunstância de que na ocasião as prisões e depois as investigações estiveram sob controle exclusivo do governo, o ônus da prova recai sobre o Estado demandado. Essas provas estiveram à disposição do governo ou deveriam ter estado se este tivesse procedido com a necessária diligência. Em casos anteriores, a Corte declarou:

[…] diferentemente do que ocorre no direito penal doméstico, nos processos sobre violações de direitos humanos a defesa do Estado não pode se basear na falta de provas do demandante quando estas não podem ser obtidas sem a cooperação do Estado. É o Estado que tem o controle dos meios para esclarecer fatos ocorridos dentro de seu território. A Comissão, embora tenha capacidade para realizar investigações, na prática depende, para poder efetuá-las dentro da jurisdição do Estado, da cooperação e dos meios que lhe proporcione o governo. (Caso Velásquez Rodríguez, supra 63, parágrafos 135-136; Caso Godínez Cruz, supra 63, parágrafos 141-142.)

Do mesmo modo, no caso Aloeboetoe, a Corte eximiu a Comissão de demonstrar mediante prova documental a filiação e a identidade de várias pessoas, pois a falta dos referidos documentos se devia à negligência estatal: “[…] O Suriname não pode exigir então que se prove a filiação e a identidade das pessoas mediante elementos que não fornece a todos seus habitantes naquela região. Por outro lado, o Suriname não se dispôs nesse litígio a suprir sua inação trazendo outras provas sobre a identidade e a filiação das vítimas e de seus sucessores”.20

Por outro lado, nem sempre é necessário cumprir com o ônus de provar todos os fatos invocados na demanda, pois, segundo o Regulamento da Comissão, Artigo 39: “Serão presumidos como verdadeiros os fatos alegados na petição cujas partes pertinentes tiverem sido transmitidas ao Estado em questão, e este não fornecer informação relevante para controvertê-los dentro do prazo fixado pela Comissão conforme o Artigo 38 do presente Regulamento, sempre que de outros elementos de convicção não resulte uma conclusão contrária”.

O Artigo 38.2 do Regulamento da Corte acrescenta: “O demandado deverá declarar em sua contestação se aceita os fatos e os pedidos ou se os contradiz, e a Corte poderá considerar como aceitos aqueles fatos que não tiverem sido expressamente negados e os pedidos que não tiverem sido expressamente controvertidos”. É por isso, por exemplo, que a Corte pôde realizar as seguintes considerações:21

67. Neste caso o Estado não contestou diretamente os fatos alegados pela Comissão nem as imputações de violação dos Artigos 7, 4 e 5 da Convenção Americana e dos Artigos 1, 6 e 8 da Convenção contra a Tortura. Tanto na contestação da demanda como nas alegações finais a Guatemala concentrou sua defesa no argumento de que os fatos do caso haviam sido investigados pelos tribunais domésticos, os quais tinham emitido a respeito um conjunto de decisões – incluindo uma sentença da Corte Suprema – que não podem ser discutidas por outros órgãos públicos, em virtude do princípio da independência do Judiciário.

68. A esse respeito, a Corte considera, como já o fez em outros casos, que quando o Estado não contesta a demanda de maneira específica, presumem-se como verdadeiros os fatos sobre os quais guardou silêncio, sempre que das provas existentes for possível inferir conclusões consistentes sobre os mesmos […].

Em síntese, embora o ônus da prova recaia sobre os demandantes, existem situações nas quais tal ônus é imposto ao Estado, e outras circunstâncias nas quais o ônus desaparece, pois se presume – por falta de oposição do Estado – que os fatos invocados são corretos.

04

A valoração da prova

Sistemas de valoração da prova

O processo de valoração da prova é o método pelo qual são avaliados os diversos elementos de convicção validamente incorporados ao processo para tomar uma decisão sobre os fatos. É uma análise racional dos elementos de convicção, sujeita a certas regras que a organizam. Existem três sistemas tradicionais de valoração da prova:

• Livre convicção: esse sistema se baseia na inexistência de regras estabelecidas a priori que atribuam valor probatório aos elementos de prova, e também na inexistência do dever de fundamentar os motivos da decisão e do processo de valoração. Só se requer que o julgador informe sobre a conclusão fática a que chegou, sem explicar como o fez. É o clássico sistema de júri.

• Prova legal: “A lei regula minuciosamente as condições, positivas ou negativas, que devem ser reunidas para alcançar certa convicção (número de testemunhas, quantidade de indícios, confissões etc.); com isso fica definida a decisão sobre a reconstrução do fato, transformada assim numa operação jurídica”.22

• Sana crítica: esse sistema se caracteriza pela ausência de regras abstratas de valoração probatória. Exige a fundamentação da decisão, com a explicitação dos motivos que a fundamentam, a menção aos elementos de convicção levados em conta e à maneira de avaliá-los. A fundamentação da valoração deve ser racional, respeitar as regras da lógica, da psicologia, da experiência e do correto entendimento humano. “Esse método deixa o julgador em liberdade para admitir toda prova que considere útil ao esclarecimento da verdade, e para apreciá-la conforme as regras da lógica, da psicologia e da experiência comum”.23

O sistema de sana crítica é, sem dúvida, o melhor dos três, nos casos de decisões de tribunais integrados por juristas. É o método mais idôneo para desenvolver a atividade probatória e avaliar o valor de convicção dos resultados dessa atividade utilizando mecanismos racionais e as capacidades analíticas do julgador. Além disso, o sistema permite, na esfera doméstica, o controle dos recursos.

Não se trata, como ocorre no sistema de prova legal ou prova tarifada – próprio do sistema inquisitivo –, de um método rígido, utilizado para atribuir um valor legalmente determinado a cada tipo de meio probatório. Trata-se, ao contrário, de um método que não predetermina o valor de convencimento das diversas peças probatórias, mas define linhas gerais, próprias do correto raciocínio humano, aplicáveis a todo elemento probatório.

Esse é o método que a Corte utiliza, com certas inconsistências, conforme afirma em suas próprias decisões. Além do mais, a Corte, com algumas exceções, distingue o sistema de valoração de seu procedimento em relação ao que é utilizado no direito doméstico.

O sistema adotado pela Corte

Quanto à valoração probatória, a Corte adotou um sistema sui generis que aplica de maneira consistente nos casos contenciosos. De acordo com suas manifestações explícitas, a Corte utiliza um sistema de valoração probatória mais amplo e menos formal que o do direito doméstico. É o regime de sana crítica, ou persuasão racional. Isso está declarado nas próprias decisões da Corte:24

76. Concluindo, todo tribunal doméstico ou internacional deve estar consciente que uma adequada valoração da prova segundo a regra da sana crítica permitirá aos juízes chegar à convicção sobre a verdade dos fatos alegados.
[…]
81. A Corte concede valor indiciário ou circunstancial aos numerosos relatórios policiais prévios que serviram para elaborar o definitivo; estes contêm interrogatórios, declarações, descrições de lugares e fatos, práticas de lei como as relativas à exumação dos cadáveres das vítimas, além de outros dados. Esses relatórios policiais prévios são úteis no presente caso porque, de acordo com as regras da sana crítica, permitem chegar a estabelecer a convicção sobre os fatos; com maior razão nessas situações de seqüestro e de morte violenta, nas quais se procura apagar todo rastro que delate seus autores.

Como veremos, uma coisa é o que a Corte diz e outra é o que a Corte realmente faz ao valorar os elementos de convicção sobre os quais baseia as premissas fáticas de suas resoluções. O sistema aplicado pela Corte se caracteriza por utilizar dois métodos diferentespara valorar a prova.

Se os elementos de prova não foram controvertidos, objetados ou impugnados pelas demais partes, a Corte costuma, como regra: (a) considerá-los válidos; (b) incorporá-los ao acervo probatório; e (c) considerar provado o fato que o elemento de prova tende a demonstrar. Assim, no caso Suárez Rosero a Corte estabeleceu que:25

30. A declaração da testemunha senhora Carmen Aguirre e o laudo pericial do doutor Ernesto Albán Gómez tampouco foram objetados pelo Estado e, por isso, a Corte considera provados os fatos declarados pela primeira, assim como as considerações que, sobre o direito equatoriano, fez o perito. (Grifo nosso.)

Nesse sentido, a Corte Interamericana recorre a um princípio dispositivo, dando valor probatório àqueles elementos de convicção não impugnados pelas partes, sem se preocupar em demasia com o valor de convicção do quadro probatório.

Não se outorga valor probatório a tais elementos de convicção pela análise de seu valor intrínseco, nem por sua concordância com o restante do quadro probatório. Na realidade, seu valor de convicção não depende das regras da sana crítica, mas da falta de impugnação da outra parte. Fica claro, então, que os elementos de prova não impugnados pelas partes têm valor probatório pelo simples consentimento da outra parte, que reconhece seu valor de convicção.

Por esses pressupostos, a Corte Interamericana deixa de lado o regime da sana crítica e se limita a levar em conta as eventuais faculdades de impugnação da prova pelas partes do processo.

Aplicação da sana crítica

Em outras ocasiões, a Corte aplica estritamente o sistema da sana crítica. Mas a utilização desse método de valoração, que deveria valer para todos os elementos de convicção que compõem o quadro probatório, limita-se a casos determinados.

Com efeito, a Corte recorre aos critérios de avaliação próprios da sana crítica diante de impugnações ou objeções das partes, ou quando o elemento de convicção acarreta problemas intrínsecos que o tornem pouco confiável, ou pouco crível.

Assim, por exemplo, é uma constante o tratamento dado pela Corte em relação à valoração de declarações de testemunhas que poderiam ter algum interesse na causa:

32. A Corte considera plenamente aplicável aos testemunhos dos senhores Margarita Ramadán de Suárez e Carlos Ramadán o que tem declarado reiteradamente em sua jurisprudência, que o eventual interesse de referidas pessoas no resultado deste processo não as desqualifica como testemunhas. Além disso, suas declarações não foram impugnadas pelo Estado e se referiam a fatos dos quais os declarantes tiveram conhecimento direto, portanto devem ser aceitas como prova idônea neste caso.

33. A respeito das declarações do senhor Rafael Iván Suárez Rosero, a Corte considera que, por ser ele a suposta vítima neste caso e ter um possível interesse direto no mesmo, seu testemunho deve ser avaliado dentro do conjunto de provas deste processo.26

75. Em relação à declaração do senhor Ivcher Bronstein, a Corte estima que, por se tratar de suposta vítima e ter interesse direto no presente caso, suas manifestações não podem ser valoradas isoladamente, e sim dentro do conjunto das provas do processo. No entanto, deve-se considerar que as declarações do senhor Ivcher têm um valor especial, na medida em que podem fornecer mais informação sobre certos fatos e supostas violações cometidas contra ele. Portanto, a declaração à que se faz referência é incorporada ao acervo probatório com as considerações expressas.27

Na verdade, se eles não fossem tratados assim, não teria sentido declararem. O que se mostra mesmo necessário é conhecer os possíveis interesses dos declarantes na resolução da causa, para levar essa variável em conta na hora de avaliar suas declarações.

Nesse ponto, é interessante assinalar que a Corte Interamericana aplica as regras da sana crítica tal como são aplicadas no direito doméstico.28  Afora as manifestações da jurisprudência internacional, não se percebe a distinção supostamente substancial que a Corte aponta entre o direito internacional e o direito doméstico, no que se refere à valoração da prova.

Mesmo assim, é possível reconhecer uma particularidade no direito internacional nesse sentido. Estamos nos referindo à prática de conceder um alto valor probatório a certos elementos de convicção diante da ausência de provas adicionais ou corroborantes em relação a determinado fato ou circunstância. Essa prática, aceita no direito internacional, não se mostra adequada ao regime da sana crítica da justiça penal – pelo alto padrão probatório que se deve verificar para se impor uma condenação –, mas se revela absolutamente apropriada no direito internacional, especialmente no âmbito do direito internacional dos direitos humanos.

Objeto do processo

A singularidade no tratamento da atividade probatória por parte da Corte se mostra na prática que permite alterar o objeto fático que deve ser provado no processo para estabelecer a responsabilidade internacional do Estado.

Nesse sentido, a Corte dispôs a respeito da prática de desaparecimentos forçados, em que se faz possível provar a imputação de uma maneira singular. Assim, a Corte aceitou:29

130. O argumento da Comissão é que uma política de desaparecimentos, auspiciada ou tolerada pelo governo, tem como verdadeiro propósito o acobertamento e a destruição da prova relativa aos desaparecimentos dos indivíduos. Quando a existência de tal prática ou política tiver sido provada, o desaparecimento de determinado indivíduo concreto poderá ser provado por meio de provas circunstanciais ou indiretas, ou ambas, ou por inferência lógica, o que de outro modo seria impossível, em razão da vinculação que o último tem com a prática generalizada.
[…]
132. A Corte não encontra nenhuma razão para considerar inadmissível o enfoque adotado pela Comissão. Se é possível demonstrar que existiu uma prática oficial de desaparecimentos em Honduras levada a cabo pelo governo ou, ao menos, tolerada por ele, e se o desaparecimento de Saúl Godínez pode ser vinculado a ela, as denúncias feitas pela Comissão ficam provadas perante a Corte, sempre e quando os elementos de prova aduzidos em ambos os pontos atenderem aos critérios de valoração requeridos em casos desse tipo.

No caso do exemplo, o normal teria sido que a parte demandante se visse obrigada a demonstrar, essencialmente, o desaparecimento concreto da vítima.

Com a perspectiva aceita pela Corte, em compensação, o objeto a ser demonstrado se deslocou para duas circunstâncias: (a) as práticas sistemáticas de desaparecimentos; e (b) certa relação entre o desaparecimento denunciado e tais práticas.

Independentemente dos meios de prova – testemunhas, peritos, documentação – que utilizemos para considerar provados tais fatos, o certo é que se modificaram os fatos a serem provados.

Conteúdo da sana crítica

Nos casos em que a Corte aplica o regime da sana crítica, recorre-se a todo tipo de elementos de convicção. Assim, já em suas primeiras sentenças, a Corte sustentou:30

135. A Corte não pode ignorar a gravidade especial da atribuição a um Estado-parte da Convenção da acusação de ter executado ou tolerado em seu território uma prática de desaparecimentos. Isso obriga a Corte a aplicar uma valoração da prova que leve em conta esse extremo e que, sem prejuízo do já dito, seja capaz de criar a convicção da verdade dos fatos alegados.

136. A prática dos tribunais internacionais e domésticos demonstra que a prova direta, seja testemunhal ou documental, não é a única que pode legitimamente ser considerada para basear a sentença. A prova circunstancial, os indícios e as presunções podem ser utilizados sempre que deles se puder inferir conclusões consistentes sobre os fatos.

137. A prova circunstancial ou presumível mostra-se de especial importância quando se trata de denúncias sobre o desaparecimento, já que essa forma de repressão se caracteriza por procurar a supressão de todo elemento que permita comprovar o seqüestro, o paradeiro e o destino das vítimas.

Como se pode notar, todas as classes de provas que são propostas também são utilizadas no âmbito doméstico. O que para nós não fica claro é o que a Corte designa com o termo “presunção”. Entende-se por presunção, no sentido genérico, considerar como verdadeiro um fato incerto e não demonstrado pela comprovação certa de um fato autônomo.

De acordo com Lino E. Palacio, existem presunções legais e presunções judiciais. As presunções legais (iuris tantum e iuris et de iure) estão definidas normativamente, enquanto as presunções simples ou judiciais “são deixadas, ao contrário, a critério do juiz, cujas conclusões não se encontram sujeitas a regras preestabelecidas, mas devem ser fixadas de acordo com os princípios da sana crítica”.31

Nesta última suposição, não só essas presunções simples, ou inferências, realizadas racionalmente, são absolutamente válidas como, além disso, são próprias do regime da sana crítica.

Em qualquer procedimento penal no âmbito doméstico, por exemplo, é difícil, se não impossível, demonstrar diretamente – diante da inexistência de uma confissão – todos e cada um dos elementos da imputação.32  Por esse motivo, diversos elementos são inferidos do quadro probatório mediante a análise integral do caso. Circunstâncias como o dolo, os motivos para delinqüir etc., não costumam ser objeto de provas diretas e sim de inferências realizadas a partir de outras questões que tenham sido efetivamente provadas.

Quanto ao restante, também são de uso generalizado quando se aplica o regime da sana crítica aos demais elementos de convicção enunciados pela Corte nos parágrafos transcritos.

Conclusões

Como bem diz a Corte em suas sentenças, o regime geral de valoração da prova próprio de seu procedimento, é singular e difere daquele geralmente adotado na esfera doméstica.

Talvez a diferença mais notável seja a prática da Corte Interamericana de reconhecer pleno valor probatório aos elementos de prova que não forem impugnados pelas partes. Nesse aspecto, o princípio dispositivo que é utilizado faz com que o valor de convicção dos elementos de prova dependa da vontade das partes. Se as partes não impugnam, evita-se a análise que define o regime da sana crítica.

Quando se trata de elementos de convicção pouco confiáveis, ou que foram impugnados, a Corte aplica a sana crítica, atendendo ao valor de convicção intrínseco do elemento probatório e a sua eventual concordância com o restante do quadro probatório. Nesse processo, às vezes atribui valor de convicção a certos elementos de prova que poderiam ser questionados ou insuficientes diante da carência de outros elementos de convicção.

Ademais, devemos assinalar que o método de valoração probatória aplicado pela Corte recorre a prova direta, prova circunstancial, indícios, prova indireta e inferências. Nesse aspecto, o regime da sana crítica utilizado pela Corte não se distingue daquele utilizado na esfera doméstica.

Por último, devemos assinalar que o objeto fático a ser provado é determinado pelas peculiaridades do direito internacional dos direitos humanos e dos requisitos da responsabilidade internacional. Deve-se levar em conta, além disso, que os padrões probatórios requeridos para estabelecer a responsabilidade internacional do Estado são diferentes daqueles do direito doméstico.

05

Padrões probatórios

Como vimos, o regime de sana crítica adotado pela Corte Interamericana não é diferente do adotado em cada Estado. A distinção está no padrão probatório próprio do direito internacional dos direitos humanos. Entendemos por “padrão probatório” o grau de convicção que precisa ser obtido para que um fato seja considerado provado em determinado momento processual. Assim, por exemplo, o Artigo 294 do Código Processual Penal da Argentina requer “motivo bastante” para convocar a prestar declaração em interrogatório.33

Mas tais padrões probatórios independem do regime de valoração dos meios de convicção. Poderia ser estabelecido o padrão de prova semiplena e chegar a ele mediante diversos sistemas de valoração probatória.

Por outro lado, não é certo que o regime internacional seja menos formal quanto à valoração probatória do que o direito doméstico. Na realidade, o regime da sana crítica na valoração da prova parece funcionar de maneira idêntica nos dois âmbitos jurídicos. Ou seja, é tão informal a sana crítica da Corte Interamericana quanto a dos tribunais dos Estados-parte.

Certos padrões probatórios mais flexíveis são de fato, por suas particularidades, próprios do direito internacional dos direitos humanos. Mesmo assim, a Corte insistiu quanto à informalidade no processo de valoração da prova:34

96. Quanto às formalidades requeridas em relação ao oferecimento de prova, a Corte tem expressado que “o sistema processual é um meio para realizar a justiça e […] esta não pode ser sacrificada por conta de meras formalidades. Dentro de certos limites de temporalidade e razoabilidade, certas omissões ou atrasos na observância dos procedimentos podem ser desconsiderados se se conserva um adequado equilíbrio entre a justiça e a segurança jurídica”.

97. Num tribunal internacional como é a Corte, cujo fim é a proteção dos direitos humanos, o procedimento apresenta suas próprias particularidades que o diferenciam do processo de direito doméstico. Aquele é menos formal e mais flexível que este, sem que por isso deixe de cuidar da segurança jurídica e do equilíbrio processual das partes. O anterior permite ao Tribunal maior flexibilidade na valoração da prova apresentada perante ele sobre os fatos pertinentes, de acordo com as regras da lógica e com base na experiência.

Embora alguns precedentes só façam referência à valoração, outros colocam as coisas numa perspectiva mais acertada e se referem à informalidade no processo de incorporação evaloração:35

89. A fim de obter o maior número possível de provas, este Tribunal tem sido muito flexível na admissão e na valoração das mesmas, de acordo com as regras da lógica e com base na experiência. Um critério já apontado e aplicado anteriormente pela Corte é o da ausência de formalismo na valoração da prova. O procedimento estabelecido para os casos contenciosos perante a Corte Interamericana ostenta características próprias que o diferenciam do aplicável nos processos de direito doméstico, não estando o primeiro sujeito às formalidades próprias do segundo.

90. É por isso que a “sana crítica” e a não-requisição de formalidades na admissão e na valoração da prova são critérios fundamentais para valorá-la, pois permitem apreciá-la em seu conjunto e racionalmente.

Para sermos francos, acreditamos que não se pode sustentar que uma diminuição de formalidades na aquisição da prova redundará em um processo menos formalizado de valoração. O processo de valoração continuará sendo o mesmo – o que irá variar é apenas o acervo probatório, e não o regime de valoração.

Nos casos de desaparecimentos, a Corte desenvolveu um padrão específico. Como vimos, à falta de provas diretas, basta provar a existência de uma prática sistemática de desaparecimentos ou outras violações aos direitos humanos e estabelecer a conexão entre o desaparecimento denunciado e a referida prática.36

O padrão probatório é flexível, não pela dificuldade de obter provas mais contundentes, mas pelas peculiaridades do direito internacional dos direitos humanos. Seu objetivo é proteger os seres humanos de ações do Estado. Atribuir responsabilidade ao Estado impõe menos requisitos do que atribuir responsabilidade penal pessoal.

Daí a existência de padrões probatórios mais flexíveis, não pela informalidade do regime de valoração da prova, mas pelo objeto e pelo fim desse ramo do direito. Como já vimos, nem mesmo é necessário individualizar o agente estatal responsável pelo ato lesivo, bastando verificar que se tratava de um agente do Estado-parte.

06

Ranços inquisitivos

Confusão entre meio de prova e valor probatório

Independentemente das manifestações da Corte Interamericana, e partindo da base de que um dos dois métodos que ela utiliza para valorar a prova é o da sana crítica, é possível detectar alguns ranços de cultura inquisitiva nos precedentes da Corte.

Como já vimos, o sistema da sana crítica desvincula as regras para incorporar um meio de prova ao processo das regras sobre como valorar seu peso probatório. No caso Bámaca Velásquez, os demandantes quiseram introduzir as declarações verbais de uma pessoa, que haviam sido registradas numa fita de vídeo. A Corte opinou:

103. A esse respeito a Corte considera que a fita de vídeo que contém o testemunho de Nery Ángel Urízar García, trazida pela Comissão como prova documental, carece de valor autônomo; o testemunho, que é seu conteúdo, não pode ser admitido por não ter cumprido os requisitos de validade, quais sejam: comparecimento da testemunha perante o tribunal, sua identificação, prestação de juramento, controle por parte do Estado e possibilidade de interrogatório por parte do juiz.

Aqui a Corte cometeu dois erros. Em primeiro lugar, considerou como testemunho o que claramente era uma prova documental. Com efeito, não se trata, de modo algum, de uma declaração testemunhal, pois o que uma pessoa afirma a respeito de fatos ou circunstâncias que conhece só é uma declaração testemunhal se for prestada no contexto de um processo, perante um órgão público autorizado para recebê-la e, além disso, se a declaração for realizada sob juramento. Nenhum desses requisitos está presente nessa hipótese. Finalmente, é evidente que tais entrevistas não se realizaram no contexto de um processo. A doutrina assinala, nesse sentido, outra diferença essencial entre a declaração testemunhal e a prova documental: “Emilio Betti […] observa que ‘a distância cronológica entre o ato e o efeito representativo diferencia a prova documental da testemunhal’, no que tem razão, porque ao juiz é levado o documento posteriormente a sua elaboração e, contrariamente, o efeito representativo do testemunho é percebido pelo juiz no momento em que o recebe”.37

O documento é o resultado de um ato humano, mas em si mesmo é uma coisa ou um objeto. Não é um ato representativo em si, como o é a declaração de uma testemunha – ou a confissão – que é apreciada diretamente pelo tribunal, mas sim uma coisa ou um objeto que serve para representar um fato.

Os cassetes e o vídeo oferecem provas documentais similares a uma entrevista publicada em um jornal ou transmitida pela televisão, ou a uma carta na qual uma pessoa relata um fato que permite incriminar a si mesma ou a outra pessoa. Nesse sentido, afirma-se: 38

O documento é um meio de prova indireto, real, objetivo, histórico e representativo […]; igualmente, algumas vezes pode conter uma confissão extrajudicial e outras uma espécie de declaração testemunhal de terceiros […] mas é sempre um ato extraprocessual, no sentido estrito.
[…] O documento […] tem um conteúdo probatório que, no processo em que é apresentado, pode ser confessório (se seu autor for parte no processo e o fato documentado o prejudicar ou favorecer a parte contrária) ou testemunhal (nos demais casos); mas esse documento é ummeio de prova autônomo e não um simples testemunho, tampouco uma confissão. Por esse motivo existem importantes diferenças entre aquele e estes. (Grifo nosso.)
[…] Quando uma ou mais pessoas decidem documentar um ato, não realizam “um testemunho extrajudicial de conteúdo confessional, mas sim criam um documento e documentam esse ato, com sua natureza probatória autônoma, não obstante seu caráter representativo-declarativo e o significado testemunhal ou confessional de seu conteúdo. Se esse documento é invocado, num futuro processo, por uma parte que é alheia a ele e em seu benefício, é ainda mais claro que não se trata de um testemunho de terceiro, porque só é verdadeiro testemunho o que é realizado num processo”.

Mas o erro mais grave cometido pela Corte foi rechaçar a admissibilidade do documento com o argumento de não ser uma declaração testemunhal. As declarações de uma pessoa podem se integrar a um processo de distintas maneiras. Embora a mais comum seja pelo próprio testemunho dessa pessoa, há inúmeros outros modos de incluir essa informação. Por exemplo: (a) declaração de outra testemunha; (b) gravação de áudio ou vídeo; e (c) informes escritos.

No entanto, a Corte não só se equivocou ao considerar que uma entrevista em vídeo era uma declaração testemunhal, mas, além disso e especialmente, chegou a uma conclusão ainda mais incorreta, pois impediu incluir o meio de prova como prova documental, que era de fato o que representava.

O mais terrível, ademais, foi a conexão automática estabelecida entre a falta de coincidência com os requisitos de um meio de prova incorreto – testemunhal – e a absoluta impossibilidade de a prova ser declarada admissível e, conseqüentemente, avaliada.

Isso chama a atenção, pois é reiterada a jurisprudência da Corte no sentido de que as notas de imprensa, embora não sejam prova documental – que também o são, além de terem valor probatório –, sejam aceitas no caso e valoradas conforme os critérios da sana crítica.39

Indícios

No contexto do sistema da sana crítica, os distintos meios de prova – perícia, documental, testemunhal, reconhecimentos, acareações –40  só se diferenciam dos demais quanto às regras que organizam sua incorporação ao processo. Mesmo assim, quanto a seu peso probatório, os diferentes meios de prova têm, em princípio, idêntico valor.

No regime da sana crítica, todos e cada um dos meios e elementos de prova41  introduzidos validamente no processo são “indícios”, no sentido de que “indicam” certo grau de probabilidade de o fato atribuído ser ou não certo. Nenhum meio ou elemento de prova tem valor predeterminado, ou capacidade de provar “plenamente” o fato, e nenhum tem mais valor do que os demais. Seu valor de convicção depende do valor probatório do meio de prova, e não da circunstância de que certos meios de prova têm mais valor de convicção que outros.

O tribunal é livre para apreciar cada elemento probatório e estabelecer seu valor de convicção, contanto que dê os motivos racionais em que se baseia sua apreciação e que esses motivos ou razões respeitem as regras da sana crítica.

No contexto do sistema da sana crítica, todos e cada um dos meios e elementos probatórios são, na realidade, indícios. Poucas vezes um elemento de prova, considerado isoladamente, é capaz de demonstrar de modo direto e fidedigno os diversos elementos fáticos que compõem o objeto processual. Sem dúvida, é possível que em certos casos uma só peça probatória ofereça uma demonstração direta e fidedigna de um elemento do objeto processual – por exemplo, em uma autópsia é inequívoca a prova de que a vítima está morta. Deve-se admitir, porém, que mesmo quando existem testemunhas presenciais, persiste a necessidade de provar elementos adicionais para verificar todos os pressupostos da responsabilidade internacional.

Por outro lado, se deixarmos de lado os meios técnicos de registro ou investigação e atendermos à relevância da prova testemunhal nos casos em geral, compreenderemos melhor a racionalidade do sistema. As investigações empíricas e a experiência indicam de forma inequívoca que com freqüência as declarações testemunhais são de confiabilidade bem limitada.

Ao mesmo tempo, também é certo que existem boas e más testemunhas. Por esse motivo, só as regras da sana crítica permitem a consideração individualizada de cada declaração testemunhal – ou de cada elemento de prova – concreta, por si mesma, para que caiba ao julgador julgar a credibilidade, a confiabilidade e o valor probatório de cada declaração, de acordo com suas características particulares.

Nessa consideração individualizada o julgador deve observar o conteúdo do elemento de prova em si, além de confrontá-lo com o restante do quadro probatório. Ao que parece, na jurisprudência da Corte se recorre à confrontação quando por algum motivo o elemento de convicção não se mostra inteiramente crível – por exemplo, o testemunho é da vítima. Assim, diz-se que a Corte utiliza a fórmula “devem ser valoradas dentro do conjunto de provas deste processo”42  quando se defronta com algum problema que pode afetar a credibilidade da testemunha. Mas essa confrontação, segundo as regras da sana crítica, deve ser realizada com cada elemento probatório, e não só com os problemáticos.

Em síntese, na jurisprudência desenvolvida pela Corte, a exposição dos princípios soa razoável; porém, na prática, ao valorar concretamente os elementos de prova, ela parece recorrer a alguns elementos do sistema de prova tarifada.43

07

Conclusões

A atividade probatória constitui uma atividade central nos procedimentos contenciosos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em que um Estado-parte é demandado pela violação de um ou mais direitos garantidos na Convenção Americana. Tal atividade, no entanto, apresenta singularidades próprias do direito internacional dos direitos humanos, que se devem em particular ao objeto e à finalidade desse ramo do direito.

Respeitando o princípio do contraditório, os elementos de prova introduzidos em um caso concreto são os que foram oferecidos pelas partes – na demanda e em sua contestação, respectivamente; os elementos de convicção relevantes apresentados em outras etapas processuais; e as provas que a Corte pode incorporar de ofício.

Os modos de incorporar os meios de prova são mais informais que os utilizados nos procedimentos do direito doméstico. O critério orientador que informa a atividade probatória é a descoberta da verdade sobre a provável violação de um ou mais direitos garantidos na Convenção Americana.

A atividade probatória apresenta algumas singularidades próprias do direito internacional dos direitos humanos. O procedimento perante a Corte se distingue de procedimentos característicos do direito doméstico por critérios como a gravidade da violação; a necessidade de reparar o dano causado pela violação; e o objeto processual que consiste em atribuir responsabilidade internacional.

Esse procedimento de proteção aos direitos humanos está regulado de maneira a permitir o ingresso da maior quantidade possível de elementos de prova com o objetivo de determinar a verdade dos fatos. Nesse sentido, o único elemento relevante a ser provado é que a violação denunciada é atribuível a um poder público, sem ser preciso identificar um autor concreto.

O tratamento do ônus da prova também apresenta singularidades. Em princípio, o ônus de provar os fatos que são objeto da demanda cabe à Comissão. Mesmo assim, esse ônus é atenuado por duas vias distintas. Em primeiro lugar, às vezes o demandante é eximido do ônus probatório se os meios de prova forem inacessíveis para ele, por estarem em poder ou à disposição do Estado. Nesses casos, ele é dispensado de provar um ou mais fatos ou circunstâncias.

Em segundo lugar, se o Estado não contestar os fatos que são objeto da demanda, estes serão considerados certos, mediante a aplicação de uma suposição regulamentar.

Existe um vazio normativo em tudo que se relaciona à valoração da prova, pois não há menção ao assunto na Convenção Interamericana, e tampouco nos Regulamentos. Por isso, é o desenvolvimento da jurisprudência que tem dado forma ao sistema vigente.

O sistema de valoração probatória adotado pela Corte Interamericana é o da sana crítica. Embora tenha sido assinalado na jurisprudência que o regime de valoração difere do adotado pelo direito doméstico, por ser mais informal, este funciona exatamente igual àquele.

A Corte considera que possui absoluta liberdade quanto à valoração probatória. Mesmo assim aplica, no substancial, o regime da sana crítica e valora a prova direta, a prova circunstancial e a prova de indícios, com as inferências indispensáveis para basear os fatos necessários para ditar sentença. No entanto, a Corte, ao valorar a prova, incorre em algumas práticas próprias do sistema de prova tarifada.

O procedimento contencioso perante a Corte Interamericana caracteriza-se por um padrão probatório pouco exigente para demonstrar a responsabilidade internacional do Estado demandado.

A flexibilidade desse padrão probatório não tem relação alguma com o regime de valoração da prova, vinculando-se ao objetivo e à finalidade do direito internacional dos direitos humanos.

No caso dos desaparecimentos, a Corte desenvolveu um padrão específico que requer a prova de uma prática sistemática de desaparecimentos e certa relação entre o fato denunciado e a referida prática.

Para finalizar, é possível assinalar que o desenvolvimento jurisprudencial da Corte Interamericana em relação à atividade probatória no procedimento contencioso é bem consistente. Cabe também mencionar que a adoção de um regime de sana crítica para valorar os elementos de convicção ainda traz em si práticas próprias de um sistema de prova legal.

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Notas

* Sana crítica: princípio do livre convencimento do juiz, desde que motivado, ou princípio da persuasão racional. [NE]

1. Daqui em diante, nas referências à Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizaremos Corte Interamericana ou Corte IDH; para a Comissão Interamericana, Comissão ou CIDH; e para a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Convenção Americana, Convenção ou CADH.

2. No caso Canese, por exemplo, dos 229 parágrafos da sentença, 23 eram dedicados à prova (item V, A prova, parágrafos 46-68), e 69, aos fatos (item VI, Fatos provados, parágrafos 1-69), equivalendo a um total de 92 parágrafos dedicados às questões de fato e prova (40%). Ver Corte IDH, caso Ricardo Canese vs Paraguai, sentença de 31 ago. 2004.

3. Corte IDH, caso Godínez Cruz. Sentença de 20 jan. 1989.

4. Id.

5. Corte IDH, caso Paniagua Morales e Outros. Sentença de 8 mar. 1998.

6. Corte IDH, caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs Nicarágua. Sentença de 31 ago. 2001.

7. Corte IDH, caso Villagrán Morales e Outros (Caso dos “Niños de la Calle”). Sentença de 19 nov. 1999.

8. Caso da Comunidade Mayagna, já citado.

9. Às vezes a Corte usa tais faculdades para produzir a prova pedida pelas partes às quais já precluiu a oportunidade de oferecê-la.

10. Corte IDH, caso Bámaca Velásquez. Sentença de 25 nov. 2000.

11. Corte IDH, caso Ivcher Bronstein. Sentença de 6 fev. 2001.

12. Corte IDH, caso Bulacio vs Argentina. Sentença de 18 set. 2003.

13. Caso da Comunidade Mayagna, já citado.

14. Caso Bulacio, já citado.

15. Ver Corte IDH, caso Herrera Ulloa vs Costa Rica. Sentença de 2 jul. 2004, parágrafo 68.

16. Ver A. Bovino, “The victim before the Interamerican Court of Human Rights” (Interights’ Bulletin, Londres: The International Centre for the Legal Protection of Human Rights, v. 14, 2002). Deve-se levar em conta, ainda, que os extensos prazos entre as diferentes etapas do processo, além da importância cada vez maior de documentos, argumentos e declarações de testemunhas e peritos apresentados por escrito atentam também contra o imediatismo.

17. Desde a entrada em vigor do novo Regulamento da Corte, em 1º de junho de 2001, a vítima, seus familiares ou seus representantes têm legitimação autônoma para intervir e compartilham o ônus probatório com a Comissão. Ver Artigo 23.1 do Regulamento da Corte. Aqui faremos referência exclusivamente ao ônus probatório da Comissão.

18. Caso Godínez Cruz, já citado.

19. Corte IDH, caso Neira Alegría e Outros. Sentença de 19 jan. 1995.

20. Corte IDH, caso Aloeboetoe e Outros vs Suriname. Sentença de 10 set. 1993, parágrafo 64.

21. Caso Villagrán Morales e Outros, já citado.

22. Martín Abregú, “La sentencia”, in Nuevo Código procesal penal de la Nación. Análisis crítico, de vários autores. (Buenos Aires: Del Puerto, 1993), p. 207.

23. Abregú, já citado, p. 209.

24. Caso Paniagua Morales, já citado.

25. Corte IDH, caso Suárez Rosero. Sentença de 12 nov. 1997.

26. Caso Suárez Rosero, já citado.

27. Caso Ivcher Bronstein, já citado.

28. Os fatos que geram responsabilidade penal pessoal e responsabilidade internacional é que são profundamente diferentes. Isso não impede que o regime de valoração da prova possa ser aplicado de maneira praticamente idêntica em ambos os contextos jurídicos.

29. Caso Godínez Cruz, já citado.

30. Caso Godínez Cruz, já citado.

31. L. E. Palacio, Manual de derecho procesal civil (6. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1986), pp. 598 e seguintes.

32. Considere-se, por outro lado, que se tiverem sido apresentados incidentes, exceções e nulidades, por exemplo, a matéria probatória compreenderá um sem-número de questões fáticas irrelevantes para a imputação.

33. O Artigo 306 desse Código, por sua vez, exige “elementos de convicção suficientes para estimar que existe um fato delituoso e que aquele é culpável como partícipe deste” para determinar o processamento do interrogatório.

34. Caso Bámaca Velásquez, já citado.

35. Ver, por exemplo, o caso da Comunidade Mayagna, já citado.

36. Caso Godínez Cruz, já citado.

37. Hernando Devis Echandía, Teoría general de la prova judicial (6. ed., Buenos Aires: Zavalía, 1988), t. 2, p. 494.

38. Id. ibid., t. 2, pp. 501, 502 e 503.

39. Caso Ricardo Canese, op. cit.: “65. Quanto aos documentos de imprensa apresentados pelas partes, este Tribunal considerou que mesmo que não tenham o caráter de prova documental propriamente dita poderiam ser apreciados quando recolherem fatos públicos e notórios e declarações de funcionários públicos ou corroborarem aspectos relacionados com o presente caso”.

40. “Meio de prova é, no procedimento, o ato processual regulado por lei, por intermédio do qual se introduz no processo um elemento de prova, seu conteúdo eventual (a declaração testemunhal, ou laudo pericial, ou documento)”. Julio B. J. Maier, Derecho procesal penal argentino (Buenos Aires: Hammurabi, 1989), t. 1b, pp. 579 e seguintes.

41. O “elemento de prova é o dado, o rastro ou sinal, contido num meio de prova já realizado, que conduz, direta ou indiretamente, a um conhecimento certo ou provável do objeto do procedimento”. Id., ibid., p. 579.

42. Ver Corte IDH, Caso Blake vs Guatemala. Sentença de 24 jan. 1998, parágrafo 46.

43. A Corte disse: “62. O Tribunal constata que os pareceres dos peritos Máximo Emiliano Sozzo e Emilio García Méndez foram trazidos ao processo por meio do escrito que os recolheu […] Tal como fez em outras ocasiões, a Corte não dará a essa peça processual caráter deplena prova, mas apreciará seu conteúdo dentro do contexto do acervo probatório e aplicando as regras da sana crítica” (grifo nosso). Corte IDH, Caso Bulacio vs Argentina, já citado.

Alberto Bovino

Professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade de Buenos Aires, e advogado do Centro de Estudos Legais e Sociais, Buenos Aires, Argentina. Mestre em Direito pela Escola de Direito da Universidade de Colúmbia, Nova York, Estados Unidos.

Artigo original em espanhol. Tradução do original em espanhol: Luis Reyes Gil.