Ensaios

“As filhas do Egito são uma linha vermelha”

Mariam Kirollos

O impacto do assédio sexual na cultura legal egípcia

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RESUMO

O objetivo deste artigo é identificar o impacto do crescente fenômeno dos assédios sexuais na cultura legal do Egito. Com uma definição vaga nas leis egípcias e amplamente tolerado pela sociedade e pelo sistema de justiça, o assédio sexual aumentou ao longo dos anos tanto no número de ocorrências quanto na intensidade de violência. Como consequência, iniciativas jurídicas e movimentos de base emergiram buscando criminalizar o assédio sexual e acabar com a aceitação social do mesmo. Com a queda de Mubarak, o movimento de direitos humanos manteve com otimismo a solicitação por uma lei contra o assédio sexual, e com a contínua turbulência política, a batalha foi mais árdua do que o esperado. Três anos após a revolução, o assédio sexual foi finalmente criminalizado e os esforços para mudar as atitudes sociais em relação ao mesmo continuam, mas o empenho do Estado em cumprir a lei, indo além das declarações e promessas, ainda precisa ser provado.

Palavras-Chave

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Introdução

Quando estou andando na rua sozinha, e ao meu lado direito, vejo uns caras num quiosque e, à esquerda, cães vira-latas, prefiro caminhar no lado da rua onde estão os cães, porque é mais seguro, o que faz desse país uma droga.

As palavras acima foram publicadas por uma jovem egípcia no Twitter em março de 2013.11. Shaden Mohamed, Twitter post, March 17, 2013, 3:13 AM, acesso em 30 nov. 2016, https://twitter.com/ShadenMohamed/status/313231522046038016. Original post in Arabic. O assédio sexual é o tipo de violência sexual enfrentado pelas mulheres no Egito com mais frequência. Ele restringe a liberdade das mulheres, sua mobilidade e “impede que elas fiquem sozinhas em espaços públicos.”22. Deborah M. Thompson, "’The Women in the Street:’ Reclaiming the Public Space from Sexual Harassment," Yale Journal of Law and Feminism 6 (1994): 322. Em abril de 2013, a ONU Mulheres publicou um estudo que indicava que 99,3% das entrevistadas sofreram assédio sexual no Egito e que 91,5% delas sofreram contato físico indesejado.33. "Study on Ways and Methods to Eliminate Sexual Harassment in Egypt," UN Women, 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://harassmap.org/en/wp-content/uploads/2014/02/287_Summaryreport_eng_low-1.pdf . Esses números não são nenhuma surpresa, considerando que o assédio sexual tinha status de comportamento-padrão na sociedade44. Richard Quinney, "Is Criminal Behaviour Deviant Behaviour?," British Journal of Criminology 5 (1965): 134. e só foi caracterizado explicitamente como um crime na lei egípcia em 2014.

A revolução de 25 de janeiro de 2011 que começou na Praça Tahrir e culminou com a queda de Hosni Mubarak trouxe esperança ao movimento pelos direitos das mulheres. Os anos que se seguiram presenciaram uma evolução nas leis: em junho de 2014, o presidente interino Adly Mansour emitiu um decreto fundamental alterando o Código Penal para definir e criminalizar o assédio sexual, de uma vez por todas, pela primeira vez na história jurídica do Egito, um resultado concreto de quase uma década de grandes esforços de organizações da sociedade civil.55. "New Anti-Sexual Harassment Law in Egypt," UN Women, June 11, 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://www.unwomen.org/en/news/stories/2014/6/new-anti-sexual-harassment-law-in-egypt. A gravidade do assédio sexual, citada por grupos de direitos humanos como uma “epidemia”,66. "Egypt: Epidemic of Sexual Violence," Human Rights Watch, 3 jul. 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://www.hrw.org/news/2013/07/03/egypt-epidemic-sexual-violence. deu origem a um movimento resiliente, que conseguiu gerar uma lei sem precedentes, mas será que isso tem afetado a compreensão do papel da lei na sociedade?

Em seus estudos sobre a lei como um fenômeno social, David Schiff faz uma série de perguntas: “Qual é a relevância das declarações tais como ‘tudo bem, isso é legal’ ou ‘isso é ilegal’ ou ‘isso não é realmente um crime’ na tentativa de compreender os contextos sociais e sua organização? Quão importante é a lei, neste nível de realidade social?”77. David N Schiff, "Law as a Social Phenomenon," in Sociological Approaches to Law, ed. Adam Podgórecki and Christopher J. Whelan (Kent: Croom Helm, 1981): 159.

Conceitualizando o assédio sexual como uma violação dos direitos humanos, este artigo busca responder às questões de Schiff examinando o impacto do assédio sexual na cultura legal do Egito desde 2005, com uma análise particular dos eventos que ocorreram após a revolução de 2011. A cultura legal é um conceito complexo que revela o papel do direito na sociedade. Para tornar a cultura legal um conceito mais favorável à pesquisa empírica, Sally Engle Merry desagregou o conceito, a partir de uma perspectiva antropológica, em quatro dimensões, que serão utilizadas para avaliar o principal tema deste artigo. As quatro dimensões são: consciência legal, mobilização legal, práticas das instituições jurídicas e atitude social e crenças sobre a lei.88. Sally Engle Merry, "What Is Legal Culture? An Anthropological Perspective," in Using Legal Culture, ed. David Nelken (London: Wildy, Simmonds & Hill Publishing, 2012). Em termos práticos, as quatro dimensões se sobrepõem de forma significativa e se influenciam mutuamente.

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I. Uma violação de direitos humanos: Definindo Assédio Sexual na lei e na sociedade egípcia

i. O que é Assédio Sexual?

‪ O assédio sexual é um conceito relativamente novo no direito internacional e tem recebido pouca atenção em comparação com outras formas de violência sexual.99. Christine Chinkin, "Sexual Harassment: An International Human Rights Perspective," in Directions in Sexual Harassment Law, ed. Catharine A. MacKinnon and Reva B. Siegel (New Haven: Yale University Press, 2003): 655. O Egito ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, na sigla em inglês)1010. UN Committee for the Elimination of All Forms of Discrimination against Women, “General Recommendation No 19,” in Note by the Secretariat, Compilation of General Comments and General Recommendations Adopted by Human Rights Treaty Bodies, UN Doc HRI/GEN/1/Rev .1 (July 29, 1994). Atualmente, o Egito possui reservas ao artigo 2 (detalhando as medidas políticas), artigo 16 (direito da família), e artigo 29 (de arbitragem em caso de disputas) da convenção. em 1981, a qual, em certa medida, não contempla o assédio sexual fora do contexto educacional ou nos locais de trabalho. No contexto regional, o Egito continua sendo um dos três membros (juntamente com a Tunísia e Botswana) da União Africana a não ter ratificado ou assinado o Protocolo da Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres na África, mais conhecido como Protocolo de Maputo.1111. "Ratification Table / Protocol to the African Charter on Human and Peoples’ Rights on the Rights of Women in Africa," African Commission on Human and Peoples’ Rights, acesso em 30 nov. 2016, http://www.achpr.org/instruments/women-protocol/ratification/. A jurista Christine Chinkin salienta que há a necessidade de aprofundar a compreensão sobre o assédio sexual devido à violação de uma gama de direitos humanos que ele representa, como a proibição de tratamento degradante, liberdade de expressão e liberdade de associação.1212. Ibid., 655. “Estas conexões enfatizam que o assédio sexual é cometido em diversos locais, não apenas no local de trabalho, e que as proibições legais internacionais devem ser suficientemente amplas para lidar com esse fato”, Chinkin acrescenta.1313. Ibid., 655-56.

Levando isso em conta, instrumentos internacionais de direitos humanos desempenham um papel fundamental para dar destaque ao compromisso essencial de reconhecer o assédio sexual como uma forma de violência contra as mulheres. Até que uma definição ampla e coesa seja adotada, este artigo utilizará a definição da HarassMap, a principal organização que luta contra o assédio sexual no Egito:

qualquer tipo de palavras indesejadas e/ou ações de natureza sexual que violam o corpo, a privacidade ou os sentimentos de uma pessoa e façam essa pessoa se sentir desconfortável, ameaçada, insegura, com medo, desrespeitada, assustada, insultada, intimidada, abusada, ofendida ou tratada como um objeto.1414. "What Is Sexual Harassment?,"HarassMap, acesso em 30 nov. 2016, http://harassmap.org/en/resource-center/what-is-sexual-harassment/.

ii. O processo social de nomear um crime: uma importante advertência à impunidade

Al-taharush al-ginsi (denominação de assédio sexual em árabe) é um termo relativamente novo introduzido no vocabulário egípcio cotidiano. Até recentemente, o termo para se referir a assédio sexual era mu’aksa, traduzido geralmente como “flerte”1515. Angie Abdelmonem, "Reconceptualizing Sexual Harassment in Egypt: A Longitudinal Assessment of El-Taharrush El-Ginsy in Arabic Online Forums and Anti-Sexual Harassment Activism," Kohl: A Journal for Body and Gender Research 1, no. 1 (2015): 23-41. “provocação” ou, até mesmo, “elogio” em árabe egípcio coloquial.1616. Uma tradução direta do termo coloquial não está disponível e varia, dependendo do contexto. Nehad Abul Komsan, Diretora do Egyptian Center for Women’s Rights (ECWR, na denominação em inglês), relata que, quando a organização começou a trabalhar com a questão do assédio sexual, em 2004, taḥarush (assédio) era frequentemente confundido com estupro.1717. Abdelmonem, "Reconceptualizing Sexual Harassment in Egypt," (n. 21), 33. Essa opacidade conceitual e léxica do significado do termo revela as múltiplas camadas de negação que permitiram que um comportamento violador fosse um conceito normativo, disseminado sem controle, principalmente com a ausência de uma lei para defini-lo explicitamente. Ela se reflete nos processos legais. Como MacKinnon explica em seu trabalho sobre assédio sexual, “não é surpreendente que as mulheres não se queixem de uma experiência para a qual não há nenhuma definição (…) [Na] falta de um termo para expressá-lo, o assédio sexual era literalmente indescritível, o que tornava remota uma definição generalizada, compartilhada e social do termo”.1818. MacKinnon (n 25) 27.

‪Relatar casos de assédio sexual no Egito era e ainda é uma batalha (ilustrada na seção II), especialmente dada a forma indireta e insatisfatória com que a questão era abordada antes da nova lei. De acordo com um estudo de 2013 da ONU Mulheres, 23,2% das mulheres entrevistadas afirmaram que não buscaram ajuda da polícia porque a lei não penalizava o assédio sexual. Quase 20% das pessoas que relataram casos foram “repreendidas e ridicularizadas” e, em alguns casos, assediadas pela polícia.1919. U.N. Women, "Study on Ways and Methods to Eliminate Sexual Harassment in Egypt," (n. 3) 13. Antes do decreto presidencial de 2014, que define o assédio sexual, as disposições existentes que podiam ser aplicadas a casos de assédio sexual eram o artigo 278, contra “atos de indecência pública” (fi’l fadih), e o artigo 268, contra a agressão sexual (hatk-’ird).2020. "Law No. 58 01 The Year 1937 Promulgating The Penal Code," University of Minnesota Human Rights Library, acesso em 30 nov. 2016, http://www1.umn.edu/humanrts/research/Egypt/Egypt%20Criminal%20Code%20Law%201937.pdf. Tais artigos ignoram os atos moderados e sutis de assédio, incluindo o assédio verbal. Como afirma Mackinnon, essa marginalização existe “em grande parte porque a obscenidade masculina não física é intangível em termos legais e porque os atos mais violentos ocupam o centro das atenções”.2121. Fatima Maraeah Peoples, "Street Harassment in Cairo: A Symptom of Disintegrating Social Structures," The African Anthropologist 15, no. 1&2 (2008): 1-20.

O assédio sexual no Egito faz parte de um problema maior de violência social tolerada e acentuada pela falta de leis e por uma situação frágil de segurança. De acordo com a estudiosa egípcia Mariz Tadros, os motivos incluem “desejos individuais de impor domínio sobre as mulheres na rua, ‘se divertir’ e ‘se entreter’, além de um sensação de privação sexual como consequência de fatores econômicos que tornam o casamento caro e proibitivo”.2222. Mariz Tadros, "Politically Motivated Sexual Assault and the Law in Violent Transitions: A Case Study from Egypt," Institute of Development Studies 8, no. 7 (2013). No entanto, nem todos os incidentes de assédio sexual são motivados por tais causas. A história recente do Egito indica que o governo, que deveria proteger os direitos humanos, frequentemente tem sido o violador, seja cometendo diretamente a violação, por meio das ações da polícia e do exército, ou simplesmente sendo condescendente.2323. FIDH et al., "Keeping Women Out: Sexual Violence Against Women in The Public Sphere". FIDH, 2013, acesso em 30 nov. 2016, https://www.fidh.org/IMG/pdf/egypt_women_final_english.pdf. O assédio sexual no Egito alcançou, pela primeira vez, a atenção do público em 25 de maio de 2005, data nomeada por ativistas como a “quarta-feira negra”.2424. “Activists Commemorate Eighth Anniversary of ‘Black Wednesday,”’Ahram Online, 25 maio 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/64/72300/Egypt/Politics-/Activists-commemorate-eighth-anniversary-of-Black-.aspx. Manifestações foram organizadas por movimentos de oposição no Egito em protesto contra as emendas constitucionais de Mubarak que preparavam o terreno para a consolidação de seu regime autoritário.2525. "Egypt Held To Account for Failing to Protect Women Demonstrators from Sexual Assault," Egyptian Initiative for Personal Rights, 14 mar. 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://eipr.org/en/pressrelease/2013/03/14/1657. Durante as manifestações, um grupo de mulheres manifestantes e jornalistas foram assediadas sexualmente e agredidas por agentes de segurança à paisana e capangas contratados pelo partido que então se encontrava no poder do Egito, o Partido Nacional Democrático (NDP, na sigla em inglês).2626. “Egyptian Initiative for Personal Rights and Interights v Egypt (2013)," African Commission on Human and People’s Rights (323/2006). A polícia teria ficado parada nas proximidades e apenas emitido ordens verbais.2727. "Egypt Anger over ’Grope Attacks’,”’ BBC News, 1 jun. 2005, acesso em 30 nov. 2016, http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/middle_east/4600133.stm.

Em 2006, após o esgotamento de os todos recursos internos, o caso “quarta-feira negra” foi tramitado e considerado admissível perante a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP).2828. Ibid., para. 67. As quatro mulheres requerentes foram representadas pela Egyptian Initiative for Personal Rights (EIPR, na sigla em inglês) e pela organização internacional de direitos humanos Interights.2929. Ibid., para. 1. Em sua decisão de 2013, oito anos mais tarde, a Comissão considerou que o Egito violou, entre outras disposições, os direitos dos peticionários à igualdade e à não discriminação, à dignidade e proteção contra tratamento desumano e degradante, e de exprimir e divulgar opiniões dentro da lei.3030. Ibid., para. 271 (i). A Comissão solicitou uma compensação monetária para as peticionárias, instou o Egito a investigar e processar os perpetradores e o governo a ratificar o Protocolo de Maputo.3131. Ibid., para. 275 (vi). Embora o caso ainda permaneça ignorado pelo governo egípcio, a decisão foi considerada um passo bem-sucedido para a prestação de contas.

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II. Em busca de uma mudança sócio-jurídica: Consciência Jurídica, Mobilização e a Revolução Egípcia

i. Quebrando o Silêncio: A Primeira Condenação por Assédio Sexual do Egito

Consciência jurídica é um termo desenvolvido para descrever a forma pela qual os indivíduos moldam suas experiências nas esferas legais ou, em outras palavras, “a forma pela qual as pessoas se relacionam e entendem a lei e sua relevância para suas vidas”.3232. Merry, "What Is Legal Culture?," (n. 10), 66. Com uma cultura que tolera o assédio sexual e um sistema de justiça que o marginaliza, as demandas jurídicas das mulheres contra a violência sexual no Egito predominantemente se depararam com a indiferença, se não com mais violência. No Egito, a cultura prevalecente de culpabilização das vítimas, inclusive dentro das delegacias, funciona como uma barreira importante à justiça. No entanto, este obstáculo não impediu que Noha Al-Ostaz, com então 27 anos de idade, lutasse por seus direitos em 2008.

Em um dia de tráfego carregado no Cairo, em junho de 2008, um motorista de van se debruçou para fora de sua janela, apalpou o corpo de Al-Ostaz e riu.3333. Sharon Otterman, "In Cairo, a Groping Case Ends in a Prison Sentence." The New York Times, 23 out. 2008, acesso em 30 nov. 2016, http://thelede.blogs.nytimes.com/2008/10/23/in-cairo-a-groping-case-ends-in-a-prison-sentence/?_r=0. Com a ajuda de um amigo e transeuntes, Al- Ostaz levou Sherif Jebril de 30 anos para a delegacia mais próxima, onde a polícia inicialmente se recusou a abrir uma investigação.3434. "Egyptian Sexual Harasser Jailed," BBC News, 21 out. 2008, acesso em 30 nov. 2016, http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/africa/7682951.stm. “Eu simplesmente senti: nunca mais vou deixar isso acontecer de novo (…) [mas] o problema é que as mulheres não estão se beneficiando das leis que temos (…) [e]) a não ser que insistamos em defender nossos direitos e digamos não e pelo menos busquemos ajuda ou levemos os assediadores (como Sherif Jebril) para a delegacia, as coisas não vão mudar”, Al-Ostaz disse ao The New York Times.3535. Otterman, "In Cairo, a Groping Case Ends in a Prison Sentence," (n 44).

O caso No. 11.551/2008, de Al-Ostaz, foi encaminhado à justiça e concluído em novembro de 2008, tendo sido o réu condenado a uma pena de prisão de três anos com trabalho pesado nos termos do artigo 268 (agressão) por apalpar os seios de Al-Ostaz.3636. Sami Abdelrady e Farouk Aldesouky, "Al-Masry Al-Youm Publishes the Judgment on Merits in the Sexual Harassment Caseالمصري اليوم تنشر حيثيات الحكم فى قضيةالتحرش الجنسى, 25 nov. 2008, acesso em 30 nov. 2016, http://today.almasryalyoum.com/article2.aspx?ArticleID=187753. Ele também foi condenado a pagar 5.001 libras egípcias em danos para Al-Ostaz.3737. Ibid. De acordo com organizações e ativistas pelos direitos das mulheres, o veredicto histórico representou a primeira condenação em um caso de assédio sexual na história jurídica já registrada no Egito.3838. Otterman,"In Cairo, a Groping Case Ends in a Prison Sentence," (n 44).3939. Antes do decreto de 2014 que criminaliza o assédio sexual, advogados e ativistas usavam os artigos disponíveis sobre agressão sexual e/ou comportamento público indecente. A excepcional consciência de Noha Al-Ostaz sobre seus direitos legais quebrou o silêncio em torno da dura realidade de lidar com o assédio sexual no Egito. Além disso, Noha Al-Ostaz abriu caminho para que outras mulheres aprendessem e insistissem em fazer uso de seus direitos em recursos legais e de reparação.

ii. Rumo a uma Lei contra o Assédio Sexual

Uma abordagem comum para a compreensão da mobilização jurídica é examinar a tendência de grupos e indivíduos de definirem seus problemas como jurídicos e exigirem que uma ação jurídica seja tomada.4040. Merry, "What Is Legal Culture?," (n. 10), 64. Após o caso de Al-Ostaz em 2008, uma iniciativa jurídica coletiva sem precedentes foi apresentada. Dezesseis ONGs e movimentos egípcios lançaram a “Força Tarefa de Combate à Violência Sexual” (doravante denominada “Força Tarefa”) com o objetivo de oferecer apoio jurídico e psicológico às sobreviventes de todas as formas de violência sexual.4141. "The Taskforce Combating Sexual Violence Launches a Bill to Amend Penal Code Provisions on Sexual Violence," Egyptian Initiative for Personal Rights, 19 dez. 2010, acesso em 30 nov. 2016, http://eipr.org/pressrelease/2010/12/19/1060. Acompanhada por outros grupos, em 2010, a Força Tarefa – que já contava com vinte e três ONGs – lançou um projeto de lei que abordava todas formas de violência sexual com objetivo de interpelar as disposições exíguas e equivocadas sobre violência sexual existentes mencionadas na seção I.4242. "The Government Must Submit the Sexual Violence Bill to National Debate...23 NGOs Urge the Government to Initiate a Debate on Amendments to the Law on Sexual Violence before Submission to Parliament," Egyptian Initiative for Personal Rights, 23 jan. 2011, acesso em 30 nov. 2016, http://eipr.org/en/pressrelease/2011/01/23/1090.

O projeto de lei adotou “uma abordagem integrada, baseada em direitos, para proteger as mulheres contra todas formas de violência sexual, sem distinção […] [e] propôs uma definição precisa de três crimes principais: estupro, agressão sexual e assédio sexual”.4343. Ibid. Em 16 de janeiro de 2011, sem consultar as organizações da sociedade civil, o Gabinete do Egito (órgão executivo) aprovou alterações ao Código Penal que foram altamente criticadas pela Força Tarefa, inclusive referindo-se ao assédio sexual como “intimidação”.4444. Ibid. Mas não demorou muito para que o governo encontrasse resistência civil não violenta na forma de protestos e ocupações pacíficas em todo o país; uma revolução.

iii. Momentos revolucionários e esperanças não atendidas

Al-sha’ab yurid isqat al-nizam!” (o povo exige a queda do regime)4545. "Jan 25 8pm Egypt- Tahrir Square- Downtown," vídeo no YouTube, 0:45, postado por "Masry25Jan," 25 jan. 2011, acesso em 30 nov. 2016, https://www.youtube.com/watch?v=I_emuOVvlbU. foi o canto que sacudiu a praça Tahrir durante os primeiros dezoito dias da revolução egípcia que levou à queda do governante de três décadas, Hosni Mubarak, em 11 de fevereiro de 2011.4646. Haroon Siddique, Paul Owen e Richard Adams, "Mubarak Resigns - Friday 11 February." The Guardian, 11 fev. 2011, acesso em 30 nov. 2016, http://www.theguardian.com/world/blog/2011/feb/11/egypt-hosni-mubarak-left-cairo. O poder de Mubarak foi entregue ao Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito (“SCAF”, na sigla em inglês), um governo que continuou reprimindo dissidentes. A linguagem dos direitos humanos usada durante a revolução egípcia desempenhou um grande papel na mobilização e capacitação das mulheres para combater o assédio sexual. Para Upendra Baxi, ela deu “voz ao sofrimento humano” para interrogar “a barbárie do poder”.4747. Upendra Baxi, "Voices of Suffering and the Future of Human Rights," Transnational Law & Contemporary Problems 8 (1998): 127. Contudo, Mubarak se foi, mas o assédio sexual e os sistemas patriarcais incorporados na série de governos que se seguiram continuaram a ser o adversário mais resistente.

Christine Chinkin afirma que existe uma “conexão bem documentada entre o militarismo, a presença de forças militares dentro de uma localidade e o assédio sexual.”4848. Chinkin, "Sexual Harassment," (n 12) 657. Em 9 de março de 2011, oficiais do exército evacuaram violentamente a praça Tahrir de manifestantes e detiveram pelo menos dezessete mulheres; sete delas foram forçadas a passar pelos chamados “testes de virgindade”.4949. "African Commission Declares ’Virginity Tests’ Case Admissible," Egyptian Initiative for Personal Rights, 3 dez. 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://eipr.org/en/pressrelease/2013/12/03/1892. Os membros do SCAF argumentaram que estes testes foram destinados a proteger os soldados de acusações de estupro.5050. Ibid.

Embora os terríveis “testes de virgindade” tenham recebido muita atenção da mídia, as agressões do exército contra as mulheres não terminaram aí. Em mais uma brutal repressão aos protestos no Cairo, um infame vídeo de dezembro de 2011 mostra oficiais do exército violentamente arrastando uma mulher vestida com um abbaya (túnica) preta enquanto ela estava deitada no chão. Eles repetidamente a chutaram e a espancaram com violência, tirando sua túnica e expondo sua parte superior do corpo e seu sutiã azul5151. "Shocking Video: ’Blue Bra’ Girl Brutally Beaten by Egypt Military," vídeo no YouTube, 1:23, postado por "RT," 18 dez. 2011, acesso em 30 nov. 2016, https://www.youtube.com/watch?v=mnFVYewkWEY&bpctr=1438264944. – uma imagem assustadora que deixará para sempre uma mancha na história do Egito sob o governo do SCAF. “Banat masr khat ahmar!”, que significa “as filhas do Egito são o limite” e expressa que algo passou dos limites aceitáveis, foi um canto entoado por uma multidão de milhares de mulheres indignadas que marcharam pelo Cairo segurando cartazes contra o exército e brandindo a imagem da “moça de sutiã azul”.5252. Yolande Knell, "Egypt Unrest: Women Protest against Army Violence." BBC News, 20 dez. 2011, acesso em 30 nov. 2015, http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-16267436. Tal resposta social ilustra o impacto do que aconteceu na consciência jurídica e mobilização das mulheres, tendo as experiências de violência sido redefinidas como violações.5353. Ibid.

iv. “Os círculos do Inferno”: assédio sexual em grupo, agressões e estupros em protestos

Em meio aos protestos que ocorreram na Praça Tahrir após 2011, relatos de violentos assédios sexuais em grupo e agressões contra manifestantes do sexo feminino começaram a surgir. Por causa do estigma social associado a esse tipo de ataque, as sobreviventes da violência sexual no Egito raramente estão dispostas a falar publicamente sobre suas experiências. Em um caso isolado em fevereiro de 2013, Yasmine El-Baramawy, na época com 30 anos de idade, apareceu ao vivo num programa de televisão egípcio de renome para compartilhar seu horrendo relato como sobrevivente de um estupro coletivo na Praça Tahrir – que acabou por ser apenas um entre diversos outros casos.5454. "‫‫ياسمين البرماوي وواقعة التحرش بها في التحرير‎ - Yasmine El Baramawy and the Sexual Violence Incident in Tahrir," vídeo do YouTube, fev. 2013, acesso em 30 nov. 2016, https://www.youtube.com/watch?v=l7w_jKRrVNc. Nos protestos contra as emendas constitucionais de novembro de 2012 do ex-presidente Mohammed Morsi, El-Baramawy foi cercada por dezenas de homens, possivelmente até uma centena, que tiraram sua roupa e a violentaram por noventa minutos nas cercanias da praça.5555. "Egypt: Epidemic of Sexual Violence," Human Rights Watch, (n 8). El-Baramawy, em sua aparição na televisão pública, exibiu os restos de sua calça rasgada com lâminas e contou que ela foi colocada sobre o capô de um carro que percorreu os arredores da praça. Os perpetradores gritaram que ela tinha uma bomba amarrada em seu corpo para impedir qualquer ajuda.5656. "‫‫ياسمين البرماوي وواقعة التحرش بها في التحرير‎ - Yasmine El Baramawy and the Sexual Violence Incident in Tahrir" (n 76).‘‫‫ياسمين البرماوي وواقعة التحرش بها في التحرير‎ - Yasmine El Baramawy and the Sexual Violence Incident in Tahrir’ (n 76). O padrão sistemático de ataques mais tarde foi nomeado pelos ativistas como “círculos do inferno”.5757. FIDH et al., "Keeping Women Out," (n 4) 11. Em março de 2013, com o apoio da sociedade civil egípcia, El-Baramawy, em conjunto com outras seis sobreviventes dos ataques Praça Tahrir, apresentou uma demanda jurídica coletiva.5858. "Egypt: Epidemic of Sexual Violence," Human Rights Watch, (n 8). Até o momento, o caso não resultou em nenhuma acusação e permanece em investigação.

Apesar da escassez de dados precisos que indiquem uma correlação entre a revolução e o aumento da violência sexual no Egito, ativistas de direitos das mulheres egípcias afirmam que a expansão geral da violência e os recorrentes confrontos tiveram uma influência indiscutível: “não podemos separar o aumento da violência contra as mulheres na esfera pública do fato de que mais mulheres estão mais ativas agora em mais espaços públicos do que antes”.5959. Hind Ahmad Zaki and Dalia Abd Alhamid, "Women As Fair Game in the Public Sphere: A Critical Introduction for Understanding Sexual Violence and Methods of Resistance." Jadaliyya, 9 jul. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://www.jadaliyya.com/pages/index/18455/women-as-fair-game-in-the-public-sphere_a-critical. Esse tipo de violência engendrou uma série de movimentos de intervenção de base, incluindo o grupo voluntário Operation Anti-Sexual Harassment & Assault (“OpAntiSH”, na sigla em inglês). A principal missão do OpAntiSH é “salvar vítimas expostas a esse tipo de incidentes e também tornar essa experiência menos severa, vigiando a praça e intervindo [fisicamente] caso ocorram tais agressões em grupo,”6060. ‎Op Anti-Sexual Harassment/Assault’s Facebook page, acesso em 30 nov. 2016, https://www.facebook.com/opantish/info?tab=page_info. ou, em outras palavras, levando a cabo o que deveria ser responsabilidade do Estado.

Em 25 de janeiro de 2013, nas celebrações que marcaram o segundo aniversário do início da revolução egípcia, o OpAntiSH documentou dezenove casos de agressão sexual em grupo contra mulheres e meninas na Praça Tahrir; em alguns casos, os estupros contaram com o uso de objetos afiados.6161. "Press Release: Operation Anti-Sexual Harassment/Assault," Facebook, 29 jan. 2013, acesso em 30 nov. 2016, https://goo.gl/5gUBLK. Infelizmente, a reação oficial foi bastante espantosa. “A moça (…) tem que proteger a si mesma antes de pedir à polícia que a proteja (…) [ela] é 100% responsável por seu estupro, porque se colocou nessa posição”, disse o general Adel Afifi, membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho da Shura (antigo Senado). Durante e após os protestos que exigiam a renúncia do ex-presidente Morsi no período de 28 de junho a 7 de julho de 2013, o OpAntiSH e a organização Nazra for Feminist Studies documentaram 186 casos, que vão desde assédio sexual em grupo a estupro.6262. Mariam Kirollos, "Sexual Violence in Egypt: Myths and Realities," Jadaliyya, 16 jul. 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://www.jadaliyya.com/pages/index/13007/sexual-violence-in-egypt_myths-and-realities-. De acordo com Vickie Langohr, o trabalho de grupos como o OpAntiSH “deu um impulso crucial para as recentes alterações do Código Penal sobre o assédio sexual, em parte devido à cobertura que seu trabalho recebeu nos meios de comunicação”.6363. Vickie Langohr, "New President, Old Pattern of Sexual Violence in Egypt," MERIP, 7 jul. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://www.merip.org/mero/mero070714. De acordo com Lutz Oette e Ilias Bantekas, tais movimentos de base que atuam na base articulam “formas de resistência que abordam injustiças com o objetivo de desafiar as agendas da elite e processos decisórios institucionalizados (…) um discurso alternativo de direitos humanos que redefine a sociedade civil e a democracia”.6464. Lutz Oette and Ilias Bantekas, International Human Rights Law and Practice (London: Cambridge University Press, 2013): 100.

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III. A Evolução da Lei do Assédio Sexual no Egito

i. Entre o regime militar e a Irmandade Muçulmana

A turbulência política do Egito ocorreu em meio a uma constante falta de empenho de governos consecutivos para proteger, promover e efetivar os direitos das mulheres e seu acesso à justiça. Esse é mais um legado da ditadura de trinta anos de Mubarak. Ao longo da evolução das leis no Egito relativas à violência sexual, o Estado tendeu a aumentar penas e definir uma sentença mínima como meios de dissuasão – isso é conhecido por especialistas em criminologia como hipótese da “dissuasão pela condenação”.6565. Anthony N. Doob, Cheryl Marie Webster e Rosemary Gartner, "Issues Related to Harsh Sentences and Mandatory Minimum Sentences: General Deterrence and Incapacitation," Centre for Criminology & Sociolegal Studies (University of Toronto), Research Summaries Compiled from Criminological Highlights, 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://criminology.utoronto.ca/wp-content/uploads/2013/09/DWG-GeneralDeterrenceHighlights14Feb2013.pdf. ‫ Em abril de 2011, o SCAF emitiu o decreto número 11, semelhante às alterações propostas antes da revolução que foram criticadas pela Força Tarefa (ver seção III), alterando certas disposições do Código Penal relativas a crimes com violência sexual. Em relação ao assédio sexual, o decreto introduziu o artigo 269 segundo, que estipula que um “ato público de indecência” ou abuso verbal é passível de punição com, no mínimo, uma pena de prisão de três meses6666. "المجلس العسكرى:تشديد عقوبة الاعتداء الجنسى والتحرش للإعدام والمؤبد - SCAF: Harsher Penalties for Sexual Assault and Harassment’," Middle East News Agency, Al-Youm 7, 1 abr. 2011, acesso em 30 nov. 2016, goo.gl/aNjB7N. – entretanto, o assédio sexual não foi abordado especificamente. Uma sentença mais dura e uma multa em dinheiro que varia de quinhentas a mil libras egípcias foi imposta, caso o crime fosse repetido.6767. Ibid. Não há indícios de que o decreto tenha tido qualquer resultado. Na realidade, de acordo com especialistas, sentenças mais duras em geral não reduzem a criminalidade.6868. Anthony N. Doob e Cheryl Marie Webster, "Sentence Severity and Crime: Accepting the Null Hypothesis," Crime and Justice 30 (2003): 187.

O regime de Morsi, que representava a Irmandade Muçulmana do Egito (doravante MB, na sigla em inglês), atraiu críticas adicionais, motivando decisões sobre uma série de exigências de longa data. Em março de 2013, o ex-primeiro-ministro Hisham Qandil ordenou que o Conselho Nacional das Mulheres (National Council for Women – NCW, na denominação em inglês), afiliado ao governo, elaborasse uma ampla lei de luta contra o assédio sexual e todas as formas de violência contra as mulheres.6969. Joel Gulhane, "NCW Draft Law to Combat Violence against Women," Daily News Egypt, 1 mar. 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://www.dailynewsegypt.com/2013/03/01/ncw-draft-law-to-combat-violence-against-women/. Em maio de 2013, o Ministério do Interior criou sua primeira unidade só para mulheres para combater a violência sexual no Egito.7070. Nadine Marroushi, "Egypt Forms Female Police Force to Combat Violence," Bloomberg, 23 maio 2013, acesso em 30 nov. 2016, http://www.bloomberg.com/news/articles/2013-05-23/egypt-forms-female-police-force-to-combat-violence-masry-says. De modo paradoxal, a unidade era composta por apenas dez membros para combater uma epidemia em uma população de mais de oitenta milhões.7171. Ibid. Em junho de 2013, o NCW submeteu o projeto de lei para combater a violência contra as mulheres para o gabinete de Morsi sem consultar ou abordar as preocupações de organizações e ativistas de direitos das mulheres.7272. FIDH et al., "Keeping Women Out," (n 4), 29. No entanto, com a remoção de Morsi do poder no início de julho de 2013 e a dissolução do Parlamento, o projeto de lei não deu em nada.

ii. Um passo na direção certa: como o assédio sexual foi criminalizado

Na década de 1970, militantes islâmicos no Egito obtiveram seus primeiros adeptos ao assumir o controle da política estudantil egípcia nas universidades públicas. Uma estratégia atraente para mobilizar e ganhar o apoio de estudantes do sexo feminino foi lhes oferecer proteção contra o assédio sexual “fornecendo-lhes transporte privado e defendendo a segregação sexual nas salas de aula lotadas.”7373. Stanley Reed, "The Battle for Egypt," Foreign Affairs 72, (1993): 94. Como o problema persistiu nas décadas seguintes, a Universidade do Cairo testemunhou um importante caso de assédio sexual que, de modo notável, colocou a questão firmemente na agenda do governo interino do Egito. Em março de 2014, uma aluna andava pelo campus da faculdade de direito quando foi cercada por um grande grupo de alunos do sexo masculino que a assediaram sexualmente. Os vídeos deste incidente, filmados por transeuntes indiferentes, tornaram-se virais nas redes sociais e em canais por satélite.7474. "‫ست الحسن - واقعة تحرش جماعي داخل حرم جامعة القاهرة‎ - Mob Harassment Incident on Cairo University Campus," vídeo no YouTube, 13:39, postado por "ON Ent," 17 mar. 2014, acesso em 30 nov. 2016, https://www.youtube.com/watch?v=aICv7-UZEO4. O incidente causou maior indignação nas organizações de direitos das mulheres quando Gaber Nassar, o diretor da Universidade do Cairo, chamou o incidente de um caso isolado, afirmando que a estudante não estava vestida “de maneira apropriada” e que ela, assim como os assediadores, poderia ser punida.7575. Ibid.

No mês seguinte, Ahmed El-Sergany, assessor do ministro da Justiça do Egito, afirmou que o incidente na Universidade do Cairo tinha motivado uma reconsideração das leis existentes no Egito sobre o assédio sexual e confirmou que um projeto de lei tinha sido apresentado ao gabinete depois de ter sido revisto pelo Ministério da Justiça.7676. "Egypt’s New Anti-Sexual Harassment Law Submitted to Cabinet," Ahram Online, 9 abr. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/64/98680/Egypt/Politics-/Egypts-new-antisexual-harassment-law-submitted-to-.aspx. Em junho de 2014, apenas alguns dias antes de entregar o poder ao presidente eleito Abdelfatah Al-Sisi, o ex-presidente interino Adly Mansour emitiu o decreto número 50, alterando o artigo 306 (a) segundo do Código Penal egípcio. O artigo 306 (b) segundo foi adicionado para combater crimes de assédio sexual, agora puníveis com uma pena de prisão mínima de seis meses e três mil libras egípcias, e para defini-lo no Código Penal, pela primeira vez na história do Egito.7777. "New Anti-Sexual Harassment Law in Egypt," U.N. Women, 11 jun. 2014, acesso em 30 nov 2016, http://www.unwomen.org/en/news/stories/2014/6/new-anti-sexual-harassment-law-in-egypt.

Talvez – e, provavelmente, – o decreto fizesse parte de um objetivo político mais amplo para legitimar a ascensão Al-Sisi ao poder.7878. Yasmin El-Rifae, "Egypt’s Sexual Harassment Law: An Insufficient Measure to End Sexual Violence." Middle East Institute, 17 jul. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://www.mei.edu/content/at/egypts-sexual-harassment-law-insufficient-measure-end-sexual-violence. O Código Penal egípcio ainda exclui outras formas de violência sexual e violência contra as mulheres, como estupro anal, o estupro conjugal e a violência doméstica.7979. "A Confused Step in the Right Direction: Commentary on the National Strategy to Combat Violence against Women," Egyptian Initiative for Personal Rights, 23 jun. 2015, acesso em 30 nov. 2016, http://eipr.org/en/pressrelease/2015/06/23/2411. Levando isso em consideração, é necessário reconhecer que essa lei fundamental é um importante passo para promover a segurança para mulheres e meninas que são vítimas de assédio sexual diariamente. Ademais, ela é um pequeno passo para mudar a cultura de negligência do Estado e a aceitação social profundamente arraigada dessa epidemia.

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IV. O impacto do abuso sexual no Estado e na sociedade

i. As práticas das instituições legais e do Executivo

As práticas e normas pelas quais as instituições jurídicas operam indicam como os profissionais que trabalham com a lei enxergam as normas. Em seu estudo sobre assédio nas ruas, a acadêmica Laura Beth Nielsen sugere que a principal razão para a relutância em recorrer às leis contra o assédio é a falta de confiança nos mecanismos de cumprimento da lei.8080. Laura Beth Nielsen, License to Harass: Law, Hierarchy, and Offensive Public Speech (New Jersey: Princeton University Press, 2004). É difícil medir o cumprimento da lei egípcia, que tem apenas dois anos, em termos estatísticos ou reais, devido à escassez de dados. No entanto, analisar o papel dos funcionários públicos e as declarações oficiais e processos judiciais pode oferecer uma perspectiva por meio da qual seja possível explorar as mudanças práticas das instituições jurídicas e a vontade política para combater o assédio sexual no Egito. No início de junho de 2014, as comemorações na posse pela eleição de Al-Sisi na praça Tahrir contaram com pelo menos nove incidentes de assédio sexual em grupo e agressão documentados por grupos de direitos humanos, que, então, questionaram a capacidade da nova lei para resolver o problema.8181. "The Mob-Sexual Assaults and Gang Rapes in Tahrir Square During the Celebrations of the Inauguration of the New Egyptian President Is Sufficient Proof for the Inefficiency of the Recent Legal Amendments to Combat These Crimes," Nazra For Feminist Studies, 9 jun. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://nazra.org/en/2014/06/mob-sexual-assaults-and-gang-rapes-tahrir-square-during-celebrations-inauguration-new. A resposta de Al-Sisi aos incidentes, embora encarada puramente como uma propaganda motivada pelos ativistas de direitos humanos,8282. El-Rifae, "Egypt’s Sexual Harassment Law" (n 107). foi sem precedentes.

Após a rápida detenção de sete supostos agressores, Al-Sisi foi fotografado visitando uma sobrevivente dos ataques no hospital. Ele entregou flores para a sobrevivente e – com uma cobertura massiva da mídia – pediu-lhe desculpas.8383. Patrick Kingsley, "Doubts Remain in Egypt Despite Sisi’s Action Against Sexual Harassment." The Guardian, 13 jun. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://www.theguardian.com/world/2014/jun/13/doubts-remain-in-egypt-despite-sisis-action-against-sexual-harassment. “Peço desculpas e lhe prometo que como Estado não vamos aceitar que tais incidentes ocorram no futuro”, Al-Sisi disse à sobrevivente, cujo rosto estava coberto com uma imagem turva para evitar sua identificação.8484. "Egypt’s President Sisi Apologises to Sex Attack Victim," BBC News, 11 jun. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-27800149. Além da velocidade com que os casos foram tratados, admitir a responsabilidade do Estado de proteger seus cidadãos, especialmente as mulheres, é um avanço nas práticas das instituições legais que definem como a lei opera. Alguns dias depois, os sete agressores foram condenados a prisão perpétua, com base na nova lei, pelos crimes de assédio sexual e de tentativa de estupro, tentativa de homicídio e tortura.8585. Yasmine Saleh, "Seven Men Sentenced to Life for Sex Attacks, Harassment." Reuters, 16 jul. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://www.reuters.com/article/2014/07/16/us-egypt-harassment-idUSKBN0FL1A020140716. Nas palavras do proeminente advogado e ativista egípcio de direitos humanos Gamal Eid, embora a sentença seja dura, “[ela] passa uma mensagem contundente a todos assediadores de que suas ações não serão mais toleradas ou aceitas”.8686. Ibid. É importante mencionar que Al-Sisi – então um general de alto escalão – foi quem defendeu os “testes de virgindade” em março de 2011 (ver seção II),8787. Ibid. (n 116). um caso assombroso para as organizações e os ativistas de direitos humanos. A intenção de Al-Sisi de ganhar apoio político está em consonância com a crítica marxista de que os direitos podem ser utilizados a serviço de um interesse político, ou, segundo a teoria de Baxi, é um exemplo da “política de direitos humanos” em oposição à “política pelos direitos humanos”. 8888. Upendra Baxi, The Future of Human Rights, 3rd ed. (London: Oxford University Press, 2008): 57.

Outra mudança extraordinária das práticas legais é a estratégia nacional do Egito para combater a violência contra as mulheres, anunciada em abril de 2015 – embora só o tempo revelará a dimensão de sua implementação. Como parte da estratégia, o Ministério do Interior aumentou o número de patrulhas para atender a casos de violência contra as mulheres, além de contratar médicos do sexo feminino para dar assistência às sobreviventes de violência sexual.8989. "Egypt’s Police Adopt New Strategy to Combat Violence Against Women," Egyptian Streets, 10 maio 2015, acesso em 30 nov. 2016, http://egyptianstreets.com/2015/05/10/egypts-police-adopt-new-strategy-to-combat-violence-against-women/. Recebidas com cautela por organizações de direitos humanos, organizações como a EIPR destacaram que a estratégia nega “que os efetivos da polícia estejam envolvidos em atos diários de assédio sexual (…) os esforços do ministério são procedimentos meramente formais que não procuram mudar a mentalidade dos efetivos policiais e de segurança sobre os direitos das mulheres”.9090. "A Confused Step in the Right Direction," (n 108). Quase um ano após a aprovação da lei, Amira, de vinte e seis anos, vivenciou as preocupações da EIPR ao prestar queixa sobre um caso de assédio sexual em uma delegacia: “‘Vá para casa, menina’, eles me disseram (…) ‘Certamente seu pai não gostaria de ouvir que sua filha é uma prostituta’”.9191. Ester Meerman, "Women Battle to Report Sexual Harassment in Egypt." The Huffington Post, 27 abr. 2015, acesso em 30 nov. 2016, http://www.huffingtonpost.com/egyptian-streets/women-battle-to-report-se_b_7143572.html. O ceticismo da comunidade de direitos humanos sobre o recente entusiasmo do Estado pelos direitos das mulheres é, portanto, compreensível.

ii. A lei pode afetar o comportamento social?

David Schiff argumenta que o impacto de uma nova lei sobre o comportamento social e o nível de cumprimento não podem ser facilmente medidos.9292. Schiff, "Law as a Social Phenomenon," (n 8), 153. No entanto, é justo dizer que o movimento de direitos humanos no Egito alcançou um de seus objetivos manifestos – falar sobre assédio sexual já não é tabu. Langohr argumenta que a circulação de vídeos e evidências documentando o crime “forçou que a questão do assédio sexual fosse incorporada no discurso público corriqueiro e tornou o fenômeno mais difícil de ser negado”.9393. Langohr, "New President, Old Pattern of Sexual Violence in Egypt," (n 88). No entanto, como já foi observado, mesmo com a existência de uma lei, a atitude social dominante de aceitação do assédio sexual continua a ser um grande obstáculo à mudança de atitudes em relação ao crime. Tais preocupações podem ser ilustradas pela reação de uma apresentadora de televisão que riu quando sua colega relatava incidentes de assédio sexual durante as comemorações na posse de Al-Sisi, acrescentando que as pessoas estavam simplesmente “felizes”.9494. Saleh, "Seven Men Sentenced to Life for Sex Attacks, Harassment," (n 116). A apresentadora foi suspensa posteriormente.9595. Kingsley, "Doubts Remain in Egypt Despite Sisi’s Action Against Sexual Harassment," (n 114).

Em uma tentativa de mudar as atitudes públicas em relação ao assédio sexual, o HarassMap foi criado em 2010 como um movimento voluntário. Ele é a primeira iniciativa independente no Egito que trabalha para combater a ampla aceitação social do assédio sexual.9696. "Who We Are," HarassMap, acesso em 30 nov. 2016, http://harassmap.org/en/who-we-are/. Com o objetivo de incentivar as mulheres a falarem, o grupo recebe relatos anônimos de assédio sexual por SMS, que então são mapeados.9797. “The Map," HarassMap, acesso em 30 nov. 2016, http://harassmap.org/en/what-we-do/the-map/. Após a promulgação da nova lei, o HarassMap lançou a campanha Al-Mutaharish Mugrem (o assediador é um criminoso). A campanha divulga vídeos e cartazes, que fazem uso da nova lei para motivar as pessoas a agirem e intervirem em apoio da pessoa assediada, “para que juntos possamos transformar nossa sociedade em uma na qual os assediadores não possam atuar com impunidade.”9898. "Harasser Is a Criminal," HarassMap, acesso em 30 nov. 2016, http://harassmap.org/en/harasser-criminal/. No mesmo sentido, um comitê ministerial encarregado de combater o assédio sexual anunciou, entre outras medidas, uma competição “para escolher a melhor série de TV exibida durante o Ramadã – um mês popular para produções televisivas – que promova os direitos das mulheres”.9999. "Egyptian Cabinet Introduces Plan to Combat Sexual Harassment," Ahram Online, 13 jun. 2014, acesso em 30 nov. 2016, http://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/64/103564/Egypt/Politics-/Egyptian-cabinet-introduces-plan-to-combat-sexual-.aspx. Todos esses exemplos são uma tentativa de transmitir o conteúdo da lei, para a sociedade em geral, o que, em seu devido tempo, promove a cultura legal.100100. Merry, "What Is Legal Culture?," (n 11), 63.

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Conclusão

É correto dizer que o nascimento de um movimento feminista contra o assédio sexual, que se recusa a tolerar atitudes e práticas patriarcais, é um dos ganhos inequívocos da revolução egípcia de 2011. Os esforços exercidos pelo movimento de direitos humanos na luta contra o assédio sexual tiveram, em grande medida, um impacto positivo na cultura jurídica do país – particularmente na consciência e mobilização jurídicas.101101. Ibid., (n 10), 43. Essa conclusão otimista advém da análise da evolução do discurso e das leis sobre o assédio sexual tanto de uma perspectiva jurídica quanto sociológica durante a última década. O movimento de direitos humanos do Egito quebrou o tabu que inibia o debate público sobre o assédio sexual. As sobreviventes estão agora empoderadas a compartilhar abertamente seus depoimentos, e um certo nível de consciência política pode ser visto na abordagem das questões sobre as mulheres nos meios de comunicação e nas redes sociais on-line. Mesmo que ainda haja tensão em torno da definição coloquial de assédio sexual como al-taḥarush al-ginsi (assédio sexual),102102. Abdelmonem, "Reconceptualizing Sexual Harassment in Egypt," (n 21), 24. o contínuo uso do termo adicionou “taḥarush” (assédio) à lista de crimes sexuais no Código Penal egípcio, refletindo a mudança na forma como a sociedade e os legisladores enxergam o crime.

No entanto, sob uma perspectiva menos otimista, o movimento de direitos humanos no Egito é cético quanto a uma transformação concreta imediata, especialmente neste estado geral de regressão dos direitos humanos. Ainda que as últimas medidas estatais possam sinalizar uma disposição de combater a violência contra as mulheres, a lei não é mais do que tinta no papel, a menos que seja integralmente implementada na prática. As autoridades egípcias devem defender a justiça nos casos em curso, como o caso “quarta-feira negra”, “testes de virgindade”, Yasmine El-Baramawy e outros. O governo deve também garantir que sua estratégia nacional recém-lançada se concretize, assim como cumpra suas obrigações previstas em tratados de direito internacional, como a CEDAW.

Em 25 de janeiro de 2011, o povo egípcio conciliou a recusa contra a ditadura de Mubarak com uma oportunidade para pôr fim a todas as formas de violência baseadas no gênero. Quando terríveis incidentes de violência sexual ocorreram no principal símbolo da revolução, a praça Tahrir, o espírito das mulheres e seus cantos fervorosos declarando seus corpos como o limite impulsionaram uma percepção particular: a liberdade contra a violência sexual é um direito humano básico. E, apesar do desalento perante a atual situação dos direitos humanos no Egito,103103. "World Report 2015," Human Rights Watch, 2015, acesso em 30 nov. 2016, https://www.hrw.org/sites/default/files/wr2015_web.pdf. não há melhor momento para expor as conquistas do movimento de direitos humanos do Egito na luta contra o assédio sexual.

Mariam Kirollos - Egito

Mariam Kirollos é uma feminista e pesquisadora de direitos humanos egípcia que vive entre Cairo e Oslo. Ela possui um mestrado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela SOAS, University of London. Kirollos foi uma das fundadoras da Operation Anti-Sexual Harassment & Assault (OpAntiSH, na denominação em inglês) e é coautora da antologia sueca Myten Om Internet (“Os mitos da Internet”). Ela publica tweets pela conta @MariamKirollos.

Recebido em outubro de 2016.

Original em inglês. Traduzido por Sebastián Porrua.