Ensaios

A África e o Estado de Direito

Makau Mutua

Sobre o problemático renascimento do liberalismo na África e por que o Estado de Direito deve ser reconsiderado para alcançar o desenvolvimento sustentável

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RESUMO

O Estado de Direito é muitas vezes visto como uma panaceia para assegurar uma democracia bem-sucedida, justa e moderna, que permita o desenvolvimento sustentável. No entanto, como Makau Mutua destaca, isto não é verdade. Usando o caso dos países africanos, ele descreve como nenhum deles conseguiu de fato se livrar dos grilhões do domínio colonial e emergir como um Estado-nação verdadeiramente justo - embora muitos tenham o Estado de Direito no coração de suas constituições. Isto, argumenta ele, deve-se ao fato de que o conceito ocidental do Estado de Direito não pode simplesmente ser transplantado para a África. O conceito deve ser adaptado para ter em conta as peculiaridades culturais, geográficas e econômicas de cada Estado. A fim de conseguir isso, Mutua oferece sete valores fundamentais a respeito dos quais o Estado de Direito deve refletir, a fim de alcançar o desenvolvimento sustentável em todo o continente.

Palavras-Chave

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Introdução

Poucos conceitos foram tão cativantes quanto o Estado de Direito.11. Brian Z. Tamanaha, On the rule of Law: History, Politics, Theory (New York: Cambridge University Press, 2004). O conceito se remete à antiguidade e à Carta Magna. Sua genialidade reside na subordinação dos governantes à lei e ao devido processo. A democracia moderna – que não é possível sem o Estado de Direito – está ancorada no liberalismo, no projeto do Iluminismo e nas tentativas de universalização da sua moralidade. Em um continuum histórico, o liberalismo é anterior e dá à luz a democracia política que por sua vez é universalizada nos direitos humanos. A linha comum que os perpassa é o Estado de Direito. Mas o Estado de Direito não existe sem complicações e controvérsias. Da mesma maneira que a democracia política e os direitos humanos, o Estado de Direito tem vivido uma história instávele sido objeto de críticas profundas sobre sua incompletude normativa, cegueira cultural, cumplicidade imperial anglo-saxônica e contexto histórico.22. Pietro Costa, Danilo Zolo e Emilio Santoro, eds., The rule of law: Theory and Critics (Dordrecht-Boston-London: Springer, 2007). Para a África, o Estado de Direito e os conceitos relacionados a ele oferecem esperança e advertência em um ambiente repleto de extrema complexidade e trauma histórico.

Deve ser feita distinção entre a “lei” e o “Estado de Direito”. Os dois termos são frequentemente confundidos. Charles Dickens em Oliver Twist popularizou a expressão em inglês “a lei é um asno – uma idiota”.33. Charles Dickens, Oliver Twist (New York: Schocken Books, 1970), 489. A referência feita por Dickens dizia respeito à rigidez da aplicação da lei, e não a própria lei per se como um artefato. A questão é que da mesma maneira que um asno, a lei é rigidamente estúpida e obstinada em sua aplicação. Despojado ao seu mínimo – e espoliado de significados mais modernos que imputem os direitos humanos em seu núcleo – o Estado de Direito assegurou fidelidade e certeza à sua aplicação. A questão não é se a lei era justa ou correta. É o Estado de Direito – e não a própria lei – que precisa ser questionado. Em outras palavras, é a linguagem dos direitos – interpretada como o Estado de Direito – que requer escrutínio.

Este artigo aceita a visão comum de que nenhuma sociedade viável pode existir hoje sem um regime jurídico digno, legítimo e largamente aceito. Em outras palavras, tanto a lei quanto o Estado de Direito são pivôs indispensáveis de qualquer sociedade política legítima. Sistemas de governo privados arbitrários, ou cleptocracias não têm lugar no mundo moderno. Mas este artigo argumenta que tal visão é apenas anti-catastrófica e não responde aos desafios apresentados pela impotência que continuam a causar e agravar a privação humana. Um sistema governado pelo Estado de Direito é mais propenso a evitar o colapso da ordem social e política, mas não é capaz de abordar as desigualdades profundamente enraizadas. Ele pode fornecer a justiça processual, mas nega a justiça social fundamental. Na verdade, os regimes liberais e até mesmo os não liberais são regidos pelo Estado de Direito. Mas isso não é capaz de evitar a opressão, a exclusão e a marginalização. Este artigo argumenta que praticamente todos os países africanos experimentam grandes lacunas de legitimidade que o Estado de Direito não é capaz de resolver a menos que uma transformação social profunda seja realizada. O suporte de direitos não é um instrumento adequado para a libertação humana. O texto identifica déficits que o Estado de Direito poderia enfrentar, mas adverte contra a euforia de depender exclusivamente da lei para desfazer distorções sociais profundas. Em última análise, o artigo questiona a viabilidade do projeto liberal na construção de uma sociedade justa e humana. Conclui-se que as soluções de mercado juntamente com a desigualdade de renda e a impotência geradas pela alienação social, exclusão e outras distorções pós-coloniais deveriam dar uma pausa às comunidades de Estado de Direito globais. É preciso repensar o lugar do Estado de Direito em uma África ressurgente, mas os modelos fracassados de outrora não devem ser replantados. O renascimento do liberalismo na África – se é isto que os africanos desejam- deve ser problematizado. Mas esse renascimento deve aprofundar a democracia para liberar o potencial humano de cada africano.

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A História de Traumas da África

A África tem países jovens, embora seja um continente velho. Talvez nenhum outro continente tenha sofrido mais traumas do que a África ao longo dos últimos 500 anos. O comércio árabe e europeu/americano na África escravizada se destaca por sua brutalidade e legado sobre os povos do continente. O comércio de escravos foi seguido pela Partilha da África, em que as sociedades africanas, instituições e normas foram destruídos pelas potências imperiais europeias. A pilhagem e o roubo dos recursos da África para o benefício do Ocidente se destacam na era do colonialismo. A independência do domínio colonial iniciada na década de 1950 trouxe pouco alívio quando as esperanças de um ressurgimento foram consumidas no caldeirão da Guerra Fria e por uma ordem econômica internacional escandalosa.44. Mohammed Bedajoui, Towards a new international economic order (New York: Holmes & Meier, 1979). Estados com partidos únicosobscuros e opressores e ditaduras militares proliferaram no continente. As elites dirigentes africanas não foram capazes de implantar a promessa da constituição liberal e aderirem ao Estado. A transição do colonialismo para um Estado independente, viável e pós-colonial provou-se extremamente desafiadora. As elites escolheram primeiramente consolidar seu próprio poder. Elas sufocaram a dissidência, desmantelaram as constituições liberais, refugiaram-se nas lealdades étnicas, reforçando o estado patrimonial.55. Ver, por exemplo, Makau Mutua, Kenya’s quest for democracy: taming leviathan (Boulder, CO: Lynne Rienner Publishers, 2008); John W. Harbeson e Donald Rothchild, eds., Africa in world politics: reforming political order, 4th ed. (Boulder, Colorado: Westview Press, 2008). Corrupção e capitalismo de compadrio tornaram-se uma cultura. Infraestruturas em colapso, sociedades fragmentadas, conflitos religiosos, civis e étnicos tornaram-se muito comuns. Muito países entraram em total colapso.66. Paul Tiyambe Zeleza e Philip J. McConnaughay, eds., Human rights, the rule of law, and development in Africa (Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2004). A transição do regime colonial para um estado pós-colonial viável provou ser mais desafiadora do que o esperado. A construção e o sustento de instituições do Estado – inclusive dentro do setor da justiça – foi prejudicada pela falta de coesão interna, rivalidades étnicas, dissonância cultural e intervenções externas.

Cada braço do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário – vivenciou contração, disfunção ou colapso. A responsabilidade, muitas vezes, era de um Executivo autoritário. Os homens no poder geralmente encurralavam a legislatura e a transformaram em um carimbo. A africanização e a indigenização do Judiciário não conseguiram fazer a transformação do setor da justiça tirando-o de sua instrumentalidade colonialista, racista, contrária à população e opressiva. Os juízes tornaram-se extensões do Executivo e serviram aos seus caprichos. Em vez de se tornarem fontes de justiça, os tribunais foram usados para instilar o medo na população, a mando do Executivo. Os tribunais foram usados para esmagar a dissidência política e restringir a sociedade civil.77. Ver, Willy Mutunga, Constitution-making from the middle: civil society and transition politics in Kenya 1992–1997 (Nairobi: Sareat & Mwengo, 1999). Sob esse clima era impossível sequer pensar em conciliar regimes legais antagônicos dentro do Estado. Sistemas de justiça formais e informais – direito civil e comum, a lei muçulmana e a sharia, os regimes de resolução de litígios e de justiça africanos, e o direito Hindu – coexistiram sem coordenação. O resultado foi uma miscelânea confusa, um guisado de regimes legais em que a vítima era muitas vezes a justiça. O pluralismo jurídico, antes fonte de força e diversidade vibrantes, subordinou os cidadãos a um tratamento muitas vezes desigual e discriminatório. Isto foi especialmente verdade no caso das mulheres e meninas. Como resultado, os tribunais e o setor jurídico mais amplo raramente eram vistos como instituições legítimas onde os cidadãos podiam buscar justiça. Os juízes eram vistos com desdém, desprezo, ou medo na maioria dos Estados africanos. É por isso que hoje a lei, tribunais e o setor jurídico são vistos com desconfiança pela maioria dos africanos. Os judiciários não são vistos como os guardiões da legalidade ou imparcialidade. E da mesma forma, a ilegitimidade do setor de justiça se estendeu a todos os outros braços do Estado.

Mesmo com esses desafios, a África tem sido um continente resiliente. Os estragos da Guerra Fria começaram a recuar com o colapso do bloco soviético no final de 1980. Os africanos levantaram conjuntamente para exigirem sociedades mais livres em todo o continente. A sociedade civil renasceu. A oposição política encontrou sua voz e se mobilizou para tomar o poder. Todo o continente, com exceção do Norte da África, onde há predomínio de população árabe, foi atingido por uma onda de liberalização política não vista desde a Década da Independência.88. Makau Mutua, “O Renascimento Africano”, New York Times,11 de maio de 1991. Não seria até a queda da cleptocracia Ben Ali, seguida dos protestos de massa na Tunísia, que os fenômenos conhecidos como a Primavera Árabe derrubariam um ditador após o outro no Norte da África.99. Scott Peterson, “A revolução do Egito redefine o que é possível no mundo Árabe”, Christian Science Monitor, 11 de fevereiro de 2011. Um caldeirão de protestos revolucionários consumiu déspotas que estavam há muito tempo no Egito, Iêmen, Líbia e cercou os outros na Síria e no Bahrein. Na África, praticamente todos os Estados sucumbiram às reformas políticas. Na África, em particular, novos pactos sociais, geralmente sob a forma de uma constituição nova ou reescrita, tornaram-se a norma. Central aos novos pactos entre o Estado e os cidadãos foram os princípios fundamentais da tradição liberal. A isso se resumiu o Estado de Direito, a democracia política através do multipartidarismo, eleições abertas e disputadas, o controle do poder Executivo, a independência judicial, a separação de poderes e a garantia dos direitos individuais. Essa onda de reconstrução do Estado Africano ficou conhecida como a segunda libertação.1010. Makau Mutua, “Direitos Humanos na África:A Promessa Limitada do Liberalismo”African Studies Review 51, no. 1 (Abril de 2008): 17-39. A África do Sul se livrou do Apartheid. Para sinalizar uma nova era, em 2001, os Estados africanos transformaram a Organização de Unidade Africana, um órgão criado para finalizar a descolonização, na União Africana (“UA”). Um dos principais objetivos da UA defendia esse novo pacto. Ele afirma claramente que a UA deve “promover os princípios e as instituições democráticas, a participação popular e a boa governança.”1111. O Ato Constitutivo da União Africana, artigo 3 (g).

As duas últimas décadas têm visto um aumento constante no crescimento da África em praticamente todos os setores – justiça, econômico, social e político. A África de hoje tem algumas das economias que mais crescem no mundo.1212. Ver: Elena Holodny, “As 13 Economias que Crescem mais Rapidamente no Mundo”, Business Insider (UK), 12 de junho de 2015, acesso em 05 de maio de 2016,http://uk.businessinsider.com/world-bank-fast-growing-global-economies-2015-6?r=US. Sem dúvida, houve reversões horríveis em alguns Estados, e uma teimosia às crises em outros. Os casos mais desesperadores são movidos pelo colapso da ordem social, o fracasso da governança, bem como a persistência de privação. Mas a negação aos cidadãos do direito de mapear seu próprio destino tem estado no centro da miséria nos poucos Estados que ainda não aderiram à caravana de liberdade. Mesmo naqueles países que optaram por um retorno à democracia política nas últimas duas décadas, muitos problemas persistem. As desigualdades sociais, a privação econômica, a discriminação ao longo de cada clivagem, além da falta de justiça social são manifestos. Ou a democracia não foi aprofundada ou a cultura de justiça não penetrou na medula óssea. Os desafios para os sistemas consolidados de governança que dão sentido à cidadania permanecem. Muitas populações ainda estão excluídas da participação política e das oportunidades econômicas. Claramente, escrever grandiosas constituições e promulgar boas leis não é o suficiente. Nem Legislativos e Executivos eleitos inauguram automaticamente uma cultura de justiça, ou criam um Estado de direitos humanos. Os Judiciários permanecem em dívida com interesses poderosos e escusos na política e na economia. O poder ainda está concentrado em poucas mãos, regiões e grupos. O Estado de Direito – entendido como a adesão às boas leis – não é panaceia suficiente para dar conta dos complexos problemas da África. Não há dúvida de que os africanos devem descompactar o conceito de Estado de Direito dentro de uma política democrática para responder a esses desafios.

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O Estado de Direito como um terreno de competição

Apesar de sua história instável, não obstante, o Estado de Direito continua a ser um dos pilares da boa governança. Ele tem evoluído ao longo do tempo para conter em si os valores fundamentais dos direitos humanos. Ao longo do tempo, a compreensão do conceito – incluindo seu alcance normativo, suaabrangência e conteúdo – tornou-se mais sofisticado. Logo após a independência da África, quadros acadêmicos ocidentais e tomadores de decisões políticas acreditavam que novos Estados da África seriam “civilizados” pelo Estado de Direito. O pensamento ocidental enxergava a África pré-colonial como pré-lei, e, portanto, argumentou que os Estados emergentes necessitavam de regimes legais ocidentais e formais de acesso à modernidade. Nenhum crédito foi dado aos sistemas jurídicos africanos pré-existentes, que foram referidos, muitas vezes, como “direito costumeiro”, “tradicional”, “selvagem” ou “não-civilizado”. Tais pontos de vista eram comuns na igreja colonial que muitas vezes era praticamente fundida com o Estado colonial. Um exemplo conciso é o de Shropshire, um missionário britânico no que é hoje o Zimbábue. Ele escreveu sobre os “nativos iletrados”, que “estavam na fase tecnicamente bárbara e pré-literária de desenvolvimento cultural e social.”1313. Denys W. T. Shropshire, The Church and Primitive Peoples (London: SPCK, 1938), xiii.

A predestinação europeia ou branca, sobre o povo negro, marrom ou amarelo tem uma longa história. A visão de mundo de Shropshire era parte do combustível para o projeto colonial. Uma filosofia que serviu de base para a missão civilizadora, uma justificativa para o Império e para a conquista cristã sobre os povos “bárbaros”. Rudyard Kipling, o poeta Inglês, capturou-a bem na publicação White Man’s Burden (“O fardo do homem branco”, em tradução livre):

Tome o fardo do homem branco, envie adiante o melhor da raça
Sujeite seus filhos ao exílio, para servirem a necessidade dos seus cativos;
Aguarde com pesada armadura, A agitação popular e selvagem—
Seus recém capturados e caprichosos povos, meio-diabos e meio-crianças.1414. Rudyard Kipling, “The White Man’s Burden: The United States and the Philippine Islands,” Rudyard Kipling, Rudyard Kipling’s Verse: Definitive Version (New York: Doubleday, 1929).

Kipling não estava escrevendo sobre a África nessa publicação, mas sua exortação aos Estados Unidos para assumirem e civilizarem os nativos filipinos é um clássico. Sua ordem para que os homens brancos colonizassem os povos nativos em seu próprio benefício era um dever da raça. É impossível compreender o projeto colonial e o movimento da modernidade fora da visão de mundo de Kipling. Tampouco é possível compreender a ocidentalização do Sul Global através dos meios do Estado moderno com os aparatos de conceitos como o Estado de Direito e os direitos humanos.1515. David Kennedy, “The International Human Rights Movement: Part of the Problem?” Harvard Human Rights Journal 14 (2002): 101-126. Boa parte disso era uma negação das normas existentes – um ataque à sabedoria acumulada. Foi o assassinato do espírito dos chamados povos nativos.

Este é o contexto em que o Ocidente via o Estado de Direito na África durante o domínio colonial e especialmente no período que se segue à descolonização. Essas noções errôneas foram parcialmente alimentadas por outra suposição errônea – a de que a África pré-colonial era desprovida de lei ou que o chamado direito consuetudinário africano estava no caminho do Estado Africano. Inicialmente, o movimento de direito e desenvolvimento procurou implantar normas legais anglo-saxãs em Estados emergentes através do estabelecimento de faculdades de direito e da formação de profissionais da área jurídica, como juízes e advogados, para apoiarem uma economia de mercado e o surgimento de instituições políticas. Não foram feitas tentativas de se enxergar o direito no contexto social mais amplo, tanto nacional como internacionalmente. Como a lei poderia ser usada para transformar a justiça social e econômica profundamente enraizadas? Haveria diferença entre o devido processo e a justiça processual em contraposição à justiça material? Poderia o direito desempenhar qualquer papel na libertação da África de uma ordem econômica internacional injusta? Seria o Estado de Direito capaz de combater o iliberalismo ou a má governança por parte do governo e das elites empenhados em proteger seus privilégios? Em uma palavra, como poderia a lei ser usada como ferramenta para a justiça social? Essas questões, centrais para o Estado de Direito, permanecem, em grande parte, sem resposta. Dessa forma, muitos dos mesmos defensores acadêmicos do movimento inicial pelo Estado de Direito para o desenvolvimento declarou o fracasso do mesmo no início dos anos 1970.1616. David Trubek e Marc Galanter, “Scholars in Self-Estrangement: Some Reflections on the Crisis in Law and Development Studies in the United States,” Wisconsin Law Review 4 (1974): 1062. Depois disso, o conceito de Estado de Direito e desenvolvimento suportou o ridículo. Acadêmicos e formuladores de políticas se deram conta do quão complexo e árduo o processo de criação de Estados viáveis e legítimos seria. O otimismo inicial logo morreu. Ao longo do tempo, houve a percepção de que o Estado de Direito entendido dentro de uma linguagem mais libertadora desempenharia um papel fundamental. Assim, sua centralidade na revisão e prática da reconstrução social, do desenvolvimento econômico estimulante e que constrói a nação e a boa governança nunca estiveram ausentes. A razão para tanto é que os africanos entendem o conceito de Estado de Direito, e não desejam imaginar, muito menos viver em uma sociedade desprovida do mesmo. É o significado e o efeito prático do Estado de Direito, e não a sua importância ou necessidade, que continuam a seros terrenos da competição. O que está claro é que o conceito está evoluindo rapidamente e está sendo re-imaginado por pensadores e praticantes.1717. David Trubek e Alvaro Santos, eds., The New Rule Of Law And Economic Development: A Critical Appraisal (New York: Cambridge University Press, 2006). Mesmo assim, ele ainda tem seus críticos ardentes e seus fervorosos defensores.1818. Kevin Davis e Michael Trebilcock, “The Relationship between Law and Development: Optimists vs. Skeptics” American Journal of Comparative Law 56 (2008): 895.

A crise de legitimidade do Estado de Direito não diminuiu sua importância. Na verdade, a atual re-imaginação do Estado Africano não seria possível sem o Estado de Direito. Conceitos de transparência e responsabilidade – fundamentais para o Estado de Direito – estão no centro dos esforços da sociedade civil, da oposição política, da imprensa e do judiciário para penetrar e reformar o Estado profundo. A escrita, ou a revisão de novas constituições coloca em posição central o uso do Estado de Direito para promover a equidade e proteger o cidadão e seus recursos contra saques. É a norma usada para justificar por que o poder deve ser esvaziado – desconcentrado–e trazido do centro para mais perto das pessoas. O clamor emergente para a descentralização como um dispositivo legal e constitucional para combater a impunidade oficial e criar menos opacidade e prestação de contas em unidades menores incorpora o Estado de Direito como uma de suas principais armas. Em uma época onde a mídia social torna cada cidadão um “olho do povo”, o acesso a informações oportunas e documentos oficiais permite a auditoria do Estado pelo público. No entanto, tal auditoria não é possível se o governo não é aberto e sujeito à lei. A capacidade das comunidades marginalizadas de participar na política e no desenvolvimento econômico depende do acesso à informação. O mesmo se dá em relação à prestação de serviços, o acesso à justiça, e cuidados de saúde. Os indivíduos e as comunidades são capazes de se mobilizar para a ação política ou para o planejamento para o desenvolvimento, se eles puderem se organizar livremente. O diálogo ou o protesto contra autoridades locais e centrais não é possível sem o Estado de Direito.

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Repensando o Desenvolvimento

A África deve repensar maneiras para resolver muitas das questões profundas que continuam a atormentar o Estado e a sociedade. As crises que o continente enfrenta não têm soluções fáceis. O problema não está no diagnóstico de mal-estar, mas na receita para superá-lo. Duas variáveis relacionadas são muitas vezes pensadas como estando no centro dessas crises. A primeira, e talvez a mais importante, é a natureza do próprio Estado africano. A ilegitimidade do Estado colonial imposta e sua resistência à democratização são as principais razões para a sua disfunção. O Estado africano é reflexivamente repressivo e, geralmente, desdenhoso da sociedade civil. Ele tem dificuldades para executar as funções básicas do Estado. Sua propensão para a corrupção é bem conhecida. Essas dificuldades permanecem no centro da crise. A segunda variável é a relação da África com a ordem jurídica, política e econômica internacional. As instituições internacionais, os estados hegemônicos, e a cultura do direito internacional têm, na melhor das hipóteses, sido negligentes, e na pior delas, destrutivos. Internamente, a África tem tentado responder ao primeiro desafio, ao reescrever a ordem constitucional criando um Estado mais transparente e ágil. Essa tentativa de reinstituir a promessa liberal original do início do Estado pós-colonial fez surgir resultados instáveis, mas visíveis. No segundo desafio, que é externo, a África tornou-se mais assertiva, com uma economia ressurgente.

O problema do desenvolvimento – subdesenvolvimento – tem sido um grande desafio para a África. Diferentes iniciativas globais, continentais e nacionais têm sido tentadas. Embora tenha havido alguns sucessos, ninguém pode contestar a persistência da pobreza, mesmo nos países mais dotados e mais desenvolvidos no continente. Grandes populações continuam a viver na extrema pobreza. A desigualdade, a discriminação e as violações dos direitos humanos mais básicos são endêmicas. A má governança e a corrupção corroem o tecido da sociedade. Algumas iniciativas globais, tais como os tão falados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), vêm e vão. Embora os ODM sejam louváveis e algum progresso tenha sido feito através deles, o histórico geral foi misto. Alguns críticos argumentaram que os ODM eram vagos e careciam de contribuição vinda do Sul Global.1919. Samir Amin, “The Millennium Development Goals: A Critique from the South,” Monthly Review 57 (2006). A legitimidade dos ODM foi questionada. Críticos apontaram o fato de que as circunscrições visadas pelos ODM foram tratadas como receptores passivos, e não como atores com poder de ação. Nem o Estado de Direito, nem os direitos humanos, foram explícitos na agenda.2020. Severine Deneulin e Lila Shahani, An Introduction to the Human Development and Capability Approach: Freedom and Agency (Ottawa: IDRC, 2009). Hoje, está claro que a responsabilização e a transparência – nacionais e internacionais – são essenciais para transformar significativamente as sociedades. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para o Pós-2015 (ODS), uma iniciativa global mais refinada, procuram remediar alguns dos déficits dos ODM. Poderiam os ODS fazer pela África o que os ODM não conseguiram?

Ao contrário dos ODM, os ODS têm um catálogo mais amplo e completo de metas que se estendem por todo o escopo da condição humana.2121. Organização das Nações Unidas, “Sustainable development goals,”Sustainable Development Knowledge Platform, acesso em 15 maio de 2015, https://sustainabledevelopment.un.org/sdgsproposal. Os elementos essenciais em todas as metas são a equidade, sustentabilidade, inclusão, transparência, capacitação, acesso e igualdade. De todos os ODS, a meta 16 é a que mais se aproxima da articulação de um Estado de Direito no contexto do desenvolvimento. Ela chama para a promoção de “sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, que proporcionem acesso à justiça para todos e construam instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. As palavras-chaves – “proporcionar o acesso à justiça para todos” – reconhecem que o desenvolvimento sustentável não é possível sem instituições que funcionem e sejam eficientes para fazer justiça sem medo ou favorecimento, para todas as pessoas. Esta é a essência do Estado de Direito. O Estado de Direito não é simplesmente um totem da democracia, mas um elemento integrante e central em todos os aspectos do desenvolvimento humano. Embora historicamente tenha sido associado – erroneamente – apenas aos direitos civis e políticos, o Estado de Direito é indispensável para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. A segregação das duas categorias de direitos humanos não foi um trabalho do intelecto, mas uma necessidade da política. É por isso que os fossos entre os conjuntos de direitos não podem ser estanques, e devem estar comprimidos em qualquer verdadeira iniciativa de desenvolvimento. Isto é particularmente verdade no caso da África, onde as violações de uma categoria de direitos (civis e políticos) é o resultado direto da negação da outra (direitos econômicos e sociais). A compreensão dinâmica do Estado de Direito na África não pode ser limitada à formalidade legal e ao procedimento. Ela deve ter como sua norma central uma rejeição àpropriedade conquistada através da opressão, bem como aos interesses de mercado que usam a lei para proteger as riquezas infundadas e a ordem econômica injusta. A justiça social e substantiva deve ser uma missão do Estado de Direito.

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Para além do liberalismo tradicional

O desenvolvimento não é um processo linear que pode ser reproduzido em todos os países. Na verdade, o contrário é verdadeiro. Modelos de política e desenvolvimento transplantados de outros lugares têm se saído muito mal na África. Há ampla evidência empírica e de outras naturezas, que as ferramentas tradicionais do Estado liberal estereotipado não são uma panaceia para os males da África.2222. Mutua, “Human Rights”. A África não pode adotar teorias liberais não digeridas sobre a reconstrução do Estado se deseja se beneficiar de alguns dos seus valores mais centrais.2323. Abdullahi A. An-Na’im e Francis M. Deng, eds., Human Rights in Africa: Cross-Cultural Perspectives (Washington, DC: The Brookings Institution, 1990). Ela deve identificar e repensar muitos princípios normativos do liberalismo e, portanto, o Estado de Direito. Isso é necessário para responder aos desafios históricos particulares e ao contexto cultural do panorama africano. Assim, o Estado de Direito não pode ser exportado para a África de maneira pré-fabricada. A regra deve ser divorciada de suas origens e usos imperialistas.2424. William Alford, “Exporting the ‘Pursuit of Happiness,’” Harvard Law Review 113 (2000); Karl Klare, “Legal Theory and Democratic Reconstruction,” University of British Columbia Law Review 25, no. 1 (1991): 69-103. Os africanos precisam identificar e isolar as áreas temáticas, normativas, e setoriais com maiores probabilidades de serem afetadas pela linguagem dos direitos e usar o Estado de Direito para transformá-las. Muitas delas são abrangentes e transversais. Os valores fundamentais são: integridade, transparência, prestação de contas, equidade, igualdade, acesso e participação. Desenvolvimento sustentável algum – que dê sentido à cidadania e um sentimento de pertencimento a todos os cidadãos e permita uma cultura de justiça – é possível sem eles. Simplificando, o Estado de Direito não tem sentido sem cada um desses valores fundamentais que devem ser abordados das seguintes formas:

1. Descentralização

É indiscutível que uma reforma profunda do Estado e de suas instituições seja uma condição necessária ao desenvolvimento. Um dos principais problemas tem sido a concentração de poder no Executivo, e a concentração desse poder nas mãos do chefe de Estado. Esse arranjo gerou o estado patrimonial e criou a impunidade e a corrupção. O poder deve ser esvaziado e transferido para unidades menores dentro do Estado. Mas o poder deve ser entendido como político e econômico. Assim, unidades descentralizadas devem ter a capacidade de planejar e gastar recursos em um processo localmente participativo. Isto responsabiliza os funcionários localmente eleitos nas bases. Mas é preciso ter cuidado para que as práticas corruptas no centro não sejam simplesmente transferidas para intermediadores locais do poder. Tampouco as unidades locais devem envolver-se em práticas de exclusão e marginalização baseadas em gênero, religião, etnia ou outras clivagens. A descentralização do poder e dos recursos é, portanto, um dos dispositivos mais eficazes para a criação de condições para o desenvolvimento sustentável. A verdadeira descentralização do poder aproxima o governo das pessoas porque cria oportunidades para a participação popular nos projetos e instituições de governança, incluindo os atores do setor de justiça. Feita corretamente, a descentralizaçãodesmistifica os tribunais e torna a justiça tangível para os cidadãos. A descentralizaçãonessa fantasia vai além do processo – é consequencialista e preocupada com resultados e contribuições substanciais na área da justiça social. A descentralizaçãopode ser uma válvula de segurança para queixas étnicas em sociedades fraturadas, porque permite um grau de autonomia regional, ou étnica, sem enfraquecer o Estado central, ou transformar-se em pleno federalismo. Ela pode melhorar a coesão nacional e dar às lealdades pré-coloniais uma razão para abraçar o Estado pós-colonial para criar uma consciência nacional. Na África, onde praticamente todos os Estados são uma mistura de distintas sociedades pré-coloniais, étnico-políticas forçadas a se unirem em um conjunto pelo cartógrafo colonial,2525. Ver, Ian Brownlie, African Boundaries: A Legal and Diplomatic Enclyclopadeia (London: C. Hurst & Co. Publishers, 1979); Makau wa Mutua, “Why Redraw the Map of Africa: A Moral and Legal Inquiry,” Michigan Journal of International Law 16, no. 4 (1995): 1113-1176. a descentralização serve ao propósito de forjar uma identidade nacional comum.

2. Transparência

Esta é uma condição indiscutível, necessária ao desenvolvimento político e econômico inclusivo e participativo. Sem ela, qualquer noção significativa do Estado de Direito ou cultura de justiça seria uma miragem. A brutalidade do Estado, a impunidade e a corrupção crescem onde o Estado é obscuro. Informações sobre os recursos do governo e como eles são gastos são essenciais. Isto demanda instituições de supervisão a nível local e nacional e uma imprensa sem restrições. A participação dos cidadãos no planejamento – semelhante ao tradicional baraza africano (reunião pública ao ar livre) – permite que as comunidades reclamem o seu próprio desenvolvimento e dá sentido à sua ação. Isto é especialmente verdadeiro, por exemplo, no contexto da exploração dos recursos naturais e minerais.

3. Equidade e justiça social

Estas são indispensáveis para a estabilidade e o desenvolvimento social. Um dos setores mais subdesenvolvidos nos Estados africanos é o setor da justiça. Tradicionalmente, os sistemas judiciários estiveram ligados ao Executivo e aos interesses das empresas privadas e corruptas.2626. Jillo Kadida, “CJ Vows to Fight Corruption in the Judiciary,” Daily Nation, June 20, 2011. Tribunais de justiça muitas vezes não são fontes de justiça.2727. Makau Mutua, “Justice under Siege: The Rule of Law and Judicial Subservience in Kenya,” Human Rights Quarterly 23, no. 1 (2001): 96-118. Os juízes são frequentemente corruptíveis, e os advogados facilitam os negócios corruptos. Grandes segmentos da população que não podem comprar a justiça não têm acesso aos tribunais. As mulheres e os pobres, muitas vezes os maiores segmentos da população, são excluídos. Não é incomum para os litigantes esperarem por uma década até que um caso seja ouvido. A falta de acesso à justiça é agravada pela escassez de tribunais em áreas rurais, onde a maioria da África vive. No entanto, este é o lugar onde os tribunais são mais necessários para resolver disputas de terra e proteger os mais vulneráveis, como as mulheres que muitas vezes são deserdadas ou sujeitas a graves exclusões. Essas condições criam uma população enraivecida e empobrecida, incapaz de desempenhar qualquer parte significativa no desenvolvimento. Tais populações marginalizadas não podem se defender ou tomar parte nas práticas e cerimônias da democracia política. Essas condições esvaziam a cidadania. A resposta a essas condições terríveis é o restabelecimento de instituições de justiça e treinamento das pessoas que trabalham no setor judicial. Há muitos exemplos na África, onde a bem-sucedida recriação do setor de justiça já está em andamento. O acesso à justiça deve ser um fim em si mesmo. Mas uma recriaçãodo setor da justiça não pode reificar o Judiciário ou esquecer de integrar e tratar com dignidade os assim chamados sistemas de justiça alternativa. O pluralismo jurídico é um fato na maioria dos Estados africanos, mas os regimes jurídicos mais negligenciados, como a lei da sharia e os mecanismos de resolução de conflitos africanos, afetam milhões. A reforma do setor precisa regularizar estes sistemas e trazê-los para dentro do âmbito do direito público, enquanto ao mesmo tempo promove o cruzamento das suas normas mais libertadoras com os sistemas de direito comum ou civil.

4. A Cultura da Governança

Ou, dito de outra forma, a cultura e o estilo de política. Na África, a cultura de governança pesa sobre o Estado. O poder político é distante do povo. Aqueles que carregam os instrumentos do Estado esperam ser temidos e não apenas respeitados. Os funcionários públicos são mestres e não servidores do povo. Essa construção do poder público vai contra todas as normas de governança democrática. Ela reprime os cidadãos, mata a discordância e entorpece o público. Ela coloca o Estado em conflito perpétuo com as pessoas. Ela cria profunda desconfiança na população em relação à autoridade pública. Essa cultura da ditadura foi identificada pelos africanos como o maior obstáculo para o desenvolvimento sustentável. Ela produz a impunidade e a corrupção galopante. Ela é irresponsável. A arrogância do poder facilita o roubo de recursos públicos e tolera as violações de direitos humanos básicos. Grandes avanços para organizar esse fenômeno têm sido feitos nas últimas duas décadas. Intelectualmente, os africanos sabem que essa cultura indefensável é a ruína do Estado. A imprensa africana em cada país está repleta de incidentes ligados à conduta inaceitável de funcionários públicos e seus acólitos de negócios. É uma cultura que deve ser diretamente interrogada e publicamente confrontada. A África não irá avançar a menos que essas mentalidades de governança da época colonial sejam banidas da vida pública.

5. Mulheres e cidadania

Gênero permanece entre os mais espinhosos desafios para o Estado de Direito e desenvolvimento. Uma venenosa mistura entre cultura, leis da era colonial e práticas religiosas conspiraram para remeter as mulheres e meninas às margens da sociedade. A sua exclusão da vida pública é um fato impressionante da existência africana. A privação das mulheres africanas – da violência doméstica às exclusões de propriedade imobiliária – é bem conhecida. Os fatos assombram a consciência humana. No entanto, as mulheres têm ressurgido recentemente e muitas delas vêm se profissionalizando como empresárias e adentrando os corredores do poder público. Mas as discriminações de gênero persistem e são poucas aquelas que escaparam da marginalização. Há um consenso em torno da ideia de que o desenvolvimento real e sustentável não ocorrerá a menos que as mulheres não apenas estejam incluídas, mas desempenhem um papel manifestamente público. O conceito de Estado de Direito deve ser transformado pelas teorias de insubordinação e multidimensionalidade – a recente compreensão do gênero e da impotência que revela as formas complexas em que múltiplas identidades sujeitam um grupo a camadas de opressão e exclusão.2828. Kimberly Crenshaw, “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics,” University of Chicago Legal Forum (1989): 139 (argumentando que as mulheres negras são excluídas da teoria feminista e das políticas anti-racistas, pois ambas não refletem a interação de raça e gênero). Veja Kimberly Crenshaw, “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color,” Stanford Law Review 43, no. 6 (1991): 1241 (explorando as dimensões de raça e gênero da violência contra as mulheres de cor); Athena D. Mutua ", Shifting Bottoms and Rotating Centers: Reflections on LatCrit III and the Black/White Paradigm,” University of Miami Law Review 53 (1999): 1177 (argumentando que os grupos na parte inferior de várias estruturas hierárquicas se deslocam dependendo da questão ou do grupo envolvido).

6. Mulheres e Migrantes

Outra população excluída – e muitas vezes abusada – é a de trabalhadores migrantes. Embora não sejam cidadãos no sentido clássico, muitos trabalhadores migrantes se instalaram permanentemente em seus países de acolhimento. Muitos desses migrantes são também mulheres que sofrem duplamente por causa de seu gênero e alienação. Conforme tem sido visto nos recentes e chocantes ataques xenófobos na África do Sul – trabalhadores migrantes, muitas vezes suportam o peso da ira gerada pela falta de justiça social e do desenvolvimento desigual.2929. “Three powerful myths that fuel xenophobia,” Mail Guardian, June 24, 2015, acesso em 26 jun. de 2015, http://www.msn.com/en-za/news/other/three-powerful-myths-that-fuel-xenophobia/ar-AAc1Rmd. Essa categoria da população é disposta de forma semelhante à das mulheres. No entanto, os trabalhadores migrantes são uma norma na África. E por esta razão, qualquer discussão sobre o Estado de Direito não deve excluir os trabalhadores migrantes, imigrantes e populações de refugiados na África.

7. A propriedade da terra, o acesso e a reforma

Mesmo que as últimas quatro décadas tenham visto um aumento histórico de africanos mudando-se para áreas urbanas, as maiores populações africanas ainda vivem em áreas rurais. A agricultura continua sendo a espinha dorsal das economias africanas, mesmo onde a riqueza mineral é abundante. A terra, em uma palavra, continua a ser a mais segura fonte de riqueza e meios de subsistência. E ainda assim, a propriedade da terra – e seu acesso – permanecem altamente exclusivos, desiguais, e são uma grande fonte de conflito. Nenhuma questão é mais volátil na África. A terra é a fonte de água, pastagens para o gado, e a base da economia familiar da África. Mas grandes populações foram historicamente excluídas da propriedade da terra, ou do acesso à terra. Grande parte da alienação da terra é rastreável e ligada à expropriação colonial – e às expulsões dos chamados “nativos” de suas terras ancestrais. Essas injustiças históricas, em grande parte, não têm sido corrigidas pelos regimes sucessores. Elas são a fonte de muitos conflitos entre clãs, etnias e comunidades. Os regimes sucessores, muitas vezes exacerbaram a alienação ao atribuírem terras anteriormente em posse de colonialistas às elites étnicas favorecidas ou cabalas e cartéis próximos do regime. A terra é um barril de pólvora na África. Os casos no Zimbábue, África do Sul, Quênia, e praticamente na maioria dos Estados africanos atestam políticas de propriedade de terras carregadas de desafios e de catástrofes, muitas vezes. Isso é ainda mais complicado pela exclusão das mulheres da propriedade da terra, embora sejam elas que primordialmente cultivem a terra. A lei tem sido um servo diligente e fiel aos cartéis corruptos que ilegalmente “tomam” a terra, muitas vezes com documentos falsos ou forjados.3030. Ver, por exemplo, Roger Southall, “The Ndungu Report: Land & Graft in Kenya”, Review of the African Political Economy 32, no. 103 (Março 2005): 142-151 - revisão do Relatório da Comissão de Inquérito sobre a Atribuição ilegal / irregular de terras públicas no Quênia. O Estado de Direito como um veículo para o desenvolvimento equitativo deve tratar a terra como um gargalo fundamental para a estabilidade e o crescimento da África.

8. A África e o mundo

Nenhuma discussão sobre o desenvolvimento da África está completa sem uma exploração da relação do continente com o mundo exterior. Grande parte dessa história foiatormentada, mas há muitos aspectos positivos na mesma. Ali Mazrui, o renomado intelectual queniano, falou da riqueza e do paradoxo contidos nesse fenômeno como sendo uma “herança tripla da África”, uma referência à alquimia complexa envolvendo a África, a Europa e o mundo muçulmano na identidade da África. Forças externas têm ao mesmo tempo devastado e enriquecido a África. Mas é a estrutura desigual e o desequilíbrio entre a África e o mundo que precisa ser tratado como parte integrante da marcha da África para um destino global maior. A voz da África na formação e influência das normas internacionais, instituições e práticas precisa ser reforçada. A desigualdade nos mercados internacionais e preconceitos em relação a África devem ser erradicados. Uma nova ordem global sem superiores e subordinados –onde a África esteja na base – deve ser um dos resultados principais dos ODS. Essa é uma longa conversa abrangendo o comércio, a geopolítica, a migração e a defesa.

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Conclusão

A difícil experiência Sul-Africana com a democracia é a prova de que o uso do discurso dos direitos isoladamente, sem uma profunda reestruturação da economia política, pode agravar a impotência entre as populações mais vulneráveis.3131. Kevin Durrheim, “Race Trouble: Identity and Inequality in Post-Apartheid South Africa,” Theory and Psychology 22, no. 5 (2011); Makau wa Mutua, “Hope and Despair for a New South Africa: The Limits of Rights Discourse,” Harvard Human Rights Journal 10 (1997): 63-114. A lei não existe no vácuo. Nem a lei e nem a linguagem dos direitos por si só podem transformar a sociedade. Mas é indiscutível o fato de que sociedade alguma poderá alcançar o desenvolvimento sustentável sem infundir em sua íntegra a cultura de justiça baseada nas normas fundamentais do Estado de Direito. No entanto, essas normas centrais devem lidar com a história singular da África e serem adaptadas às suas circunstâncias históricas para alcançarem legitimidade cultural. Ainda mais importante, a linguagem dos direitos e a cama da democracia política na qual deitam essas normas, não podem ser engolidas pela África sem prévia mastigação. Caso contrário, o renascimento do projeto liberal morrerá novamente –antes de dar frutos.

Makau Mutua - Quênia

Makau Mutua é um renomado professor da Universidade Estadual de Nova Iorque e acadêmico Floyd H. e Hilda L. Hurstda Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Nova Iorque em Buffalo (SUNY), onde atuou como reitor durante sete anos entre 2008 e 2014. Ele leciona direitos humanos internacionais, transações comerciais internacionais e direito internacional. Estudou na Universidade de Nairóbi, na Universidade de Dar-es-Salam e na Faculdade de Direito de Harvard. Mutua atuou como vice-presidente da Sociedade Americana de Direito Internacional e é membro do Conselho de Relações Exteriores. Assessorou o Banco Mundial em questões de governança e direitos humanos e é vice-presidente do Conselho Consultivo da Organização Internacional do Direito do Desenvolvimento.

Recebido em fevereiro de 2016

Original em inglês. Traduzido por Adriana Guimarães.