Ensaios

25 anos de aplicação de leis de cotas na América Latina

Lucía Martelotte

Um balanço da participação política das mulheres

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RESUMO

Nas últimas duas décadas, a maioria dos países da América Latina sancionou leis de cotas para reduzir as desigualdades de gênero na arena política e assegurar o efetivo cumprimento dos direitos políticos das mulheres. O funcionamento e a efetividade desses mecanismos têm variado em função de seu desenho normativo e de seu vínculo com o sistema eleitoral. Apesar dos progressos obtidos, porém, ainda há grandes desafios a enfrentar. Diante dessa situação, o debate sobre a participação política das mulheres tem evoluído na direção das cotas para a paridade. Essa discussão, contudo, não deve ser abordada numa perspectiva apenas numérica e restrita à esfera pública, mas vinculada com as outras duas dimensões da autonomia das mulheres (física e econômica), já que, somente quando forem garantidas as condições para uma plena autonomia das mulheres, será possível alcançar democracias paritárias.

Palavras-Chave

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Apesar de continuar sendo uma região profundamente desigual tanto em termos socioeconômicos como de gênero, a América Latina tem alcançado progressos significativos na participação política das mulheres. Na última década, Argentina, Brasil, Chile e Costa Rica elegeram mulheres como presidente, e as mulheres representam 27,2%11. “Women in National Parliaments,” Inter-Parliamentary Union (IPU), 1º de novembro de 2016, acesso em 26 nov. 2016, http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm. em legislaturas nacionais (quase 5% acima da média mundial); e 26,1% nos gabinetes nacionais.

Leis de cotas de gênero ocuparam um papel central na redução da brecha de participação política das mulheres. São ferramentas de ação afirmativa22. Trata-se de medidas ou políticas que, por meio de um tratamento diferenciado, buscam aumentar as oportunidades e o acesso a recursos de grupos ou coletivos tradicionalmente excluídos, reparando, assim, desigualdades estruturais. Para uma discussão sobre essas medidas ver: CDHDF (2007) Ações afirmativas em matéria de não-discriminação. centradas no poder Legislativo e cujo principal objetivo é corrigir a sub-representação feminina na arena política e assegurar o cumprimento efetivo dos direitos políticos das mulheres. Enquanto o movimento sufragista, surgido na segunda metade do século 19, lutou pelo direito das mulheres ao voto, as leis de cotas centraram-se na possibilidade de as mulheres serem eleitas, em outras palavras, de participarem como candidatas no processo eleitoral.

Em 1991, a Argentina foi o primeiro país do mundo a aprovar uma lei de cotas de gênero. A Lei 24.012,33. Pode-se acessar o texto integral da norma e seus decretos de regulamentação em: “Ley 24012 Honorable Congreso de la Nación Argentina,” InfoLEG, 3 de dezembro de 1991, acesso em 26 nov. 2016, http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/verNorma.do?id=411. que estabeleceu a obrigação de incorporar pelo menos 30% de mulheres nas listas no nível nacional, tornou-se um marco para a representação política das mulheres no poder Legislativo, já que, a partir disso, a adoção de medidas de ação afirmativa se espalhou não só pela região, mas também pelo mundo. Na América Latina, 15 países44. Argentina (1991), México (1996), Paraguai (1996), Bolívia (1997), Brasil (1997), Costa Rica (1997), Equador (1997), Panamá (1997), Peru (1997), República Dominicana (1997), Venezuela (1998), Colômbia (1999), Honduras (2000), Uruguai (2009) e Chile (2015). promulgaram leis de cotas, e quase a metade dos países do mundo contam hoje com tais medidas.

O processo de promulgação de leis de cotas, contudo, não tem sido simples, mas acompanhado por intensos debates. Embora tenham sido utilizados vários argumentos contra a ação afirmativa, as evidências disponíveis permitem considerá-los mais como mitos do que como argumentos válidos e verdadeiros.55. A análise desses mitos foi parcialmente publicada em: Lucía Martelotte, “Mitos de la paridad.” Página/12, 11 de setembro de 2016, acesso em 26 nov. 2016, http://www.pagina12.com.ar/diario/sociedad/3-309124-2016-09-11.html. Talvez um dos mais difundidos seja o de que as mulheres acessam os cargos públicos apenas pelo fato de serem mulheres, e não por seu mérito. Essa afirmação contém dois problemas. Por um lado, desconhece que a lógica na qual se apoiam os sistemas representativos é a da representação de interesses, e não de mérito. Basear-se principalmente no mérito conduziria a democracias restritas, onde apenas uma elite teria a possibilidade de exercer a representação. Além disso, a afirmação gera um falso dilema entre igualdade de gênero e de mérito, como se progressos no sentido de maior igualdade entre os sexos ocorressem em detrimento do mérito daqueles que nos representam. Os dados disponíveis refutam essa hipótese. Na América Latina, as taxas de matrícula no ensino secundário são maiores para as mulheres, e tem havido progressos significativos na paridade de gênero no ensino superior.66. Ver: “Situación Educativa de América Latina y el Caribe: Hacia la Educación de Calidad para Todos al 2015,” Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe (OREALC/UNESCO Santiago), 2013, acesso em 26 nov. 2016, http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/FIELD/Santiago/images/SITIED-espanol.pdf; Ana García de Fanelli e Claudia Jacinto, “Equidad y Educación Superior en América Latina: el Papel de las Carreras Terciarias y Universitarias,” Revista Iberoamericana de Educación Superior 2010 I, no. 1 (jun.-sept., 2010): 58-75. Essas pesquisas mostram que as legisladoras têm credenciais educacionais iguais ou mais altas do que seus colegas masculinos. No caso da Argentina, 79% das mulheres legisladoras do Congresso tem título superior, em comparação com 71% dos homens. Assim, ao contrário do que dizem os que se opõem à implementação de medidas de ação afirmativa, os dados demonstram que se exige às mulheres credenciais educacionais e acadêmicas mais altas para acessar os mesmos postos que os homens.

Um segundo mito sustenta que ações afirmativas violam o princípio da igualdade. Longe disso, essas medidas são uma forma de dar cumprimento ao princípio da igualdade consagrado nos marcos normativos nacionais e no direito internacional dos direitos humanos.77. No nível nacional, muitas das Constituições na região incluem ações afirmativas. Em relação ao marco normativo internacional, é possível mencionar, entre outros, o inciso 1 do artigo 4º da CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher), que se refere às medidas temporárias especiais destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres; e o objetivo estratégico G1 da Plataforma de Ação de Beijing, e em particular as medidas 190.a e 192.a. Aqueles que se opõem a essas medidas não reconhecem que proporcionar tratamento igualitário àqueles que estão em diferentes situações estruturais (no caso as mulheres em relação aos homens) não conduz à igualdade, mas, ao contrário, reproduz as desigualdades existentes. Assim, essas ações afirmativas visam a corrigir essas injustiças concedendo tratamento especial àqueles que estão em desvantagem, de forma a avançar para a igualdade substantiva e não apenas procedimental.

Por fim, um outro argumento frequente é o de que nunca é o momento adequado para levantar essas questões, e que não são necessárias medidas de ação positiva porque há uma tendência “natural” para igualdade. Segundo com um relatório recente do Fórum Econômico Mundial, o abismo entre os gêneros está longe de resolvido: seriam necessários quase 120 anos para acabar com as disparidades salariais e, embora as mulheres representem a maioria dos estudantes universitários em mais de 100 países, a distancia entre os homens e mulheres em termos de empoderamento político continua sendo a mais ampla, uma vez que as mulheres detêm apenas 28% dos cargos de liderança.88. Para aprofundar a análise da brecha de gênero em seus diferentes componentes, consultar: “Informe Global de la Brecha de Género 2015,” Fórum Econômico Mundial, 19 de novembro de 2015, acesso em 26 nov. 2016, https://www.weforum.org/es/agenda/2015/11/informe-global-de-la-brecha-de-genero-2015/.

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25 anos de implementação de leis de cotas: onde estamos?

Após mais de duas décadas de aplicação das leis de cotas na região, é necessário fazer um balanço do funcionamento dessas medidas. Quais foram os principais avanços obtidos com a aplicação de tais leis? Quais são os obstáculos que ainda persistem?

O fato de uma legisladora ser mulher não implica necessariamente compromisso com a agenda de igualdade de gênero, nem que só promova projetos relacionados aos direitos das mulheres, mas diferentes estudos têm demonstrado que as leis de cotas tiveram impacto significativo na diversificação da agenda legislativa99. Para uma análise detalhada do impacto da presença de mulheres legisladoras na expansão da agenda política, ver: Nélida Archenti e Niki Johnson, “Integração da perspectiva de género na agenda legislativa, com e sem quotas: estudo comparativo entre a Argentina e o Uruguai,” Sociologia, Problemas e Práticas (online) no. 52 (2006): 133-53; Susan Franceschet e Jennifer Piscopo, “Gender Quotas and Women’s Substantive Representation: Lessons from Argentina,” Politics and Gender no. 4 (2008): 393-425; Jutta Borner, Mariana Caminotti, Jutta Marx e Ana Laura Rodríguez Gustá, Ideas, Presencia y Jerarquías Políticas. Claroscuros de la Igualdad de Género en el Congreso Nacional de Argentina (Buenos Aires: PNUD-Prometeo Libros, 2009). por meio da incorporação de temas anteriormente esquecidos ou invisíveis, tais como a violência contra as mulheres, os direitos sexuais e reprodutivos ou a identidade de gênero.

Por outro lado, um dos resultados mais evidentes das leis de cotas tem sido o aumento do número de mulheres no poder Legislativo. Entre 1995 e 2016, a participação das mulheres nos Congressos da América Latina aumentou de 12,7% para 27,2%.1010. Em: “Las mujeres en el parlamento en 2015. Perspectiva anual,” Inter-Parliamentary Union (IPU), 2016, acesso em 26 nov. 2016, http://www.ipu.org/pdf/publications/WIP2015-s.pdf. No entanto, essa média regional esconde fortes disparidades. A presença de mulheres nos poderes legislativos dos países que têm leis de cotas varia entre 53,5% na Bolívia e 9,94% no Brasil. Como se explicam essas diferenças?1111. Como veremos nos parágrafos a seguir, essas diferenças respondem, entre outras questões, ao desenho das leis de cotas e às características do sistema eleitoral. Em relação ao desenho das leis, na Bolívia a porcentagem de mulheres é maior do que no Brasil, e além disso, estabelece um mandato de posição, que está ausente no caso do Brasil. Em relação ao sistema eleitoral, enquanto na Bolívia são aplicadas listas fechadas e bloqueadas, no Brasil se aplicam listas desbloqueadas, em que o eleitorado pode definir suas preferências.

Um primeiro dado a ter em conta é que há três tipos principais de leis de cotas: as que reservam vagas para as mulheres no Legislativo (podem ser previstas na Constituição ou em outras leis); cotas para candidaturas (também constitucionais e/ou legislativas); e as cotas que se aplicam ao interior dos partidos políticos.1212. Para mais informação sobre as cotas e os tipos de cotas, ver: The Quota Project, 2016, acesso em 26 nov. 2016, http://www.quotaproject.org. Uma das principais diferenças entre esses tipos de legislação é que enquanto a primeira e a segunda categorias implicam obrigações, as cotas no interior dos partidos são geralmente de caráter voluntário e, portanto, tendem a ter um menor grau de eficiência.

Os diversos níveis de participação, por outro lado, têm mostrado que as cotas por si só não são suficientes para garantir uma maior presença de mulheres nos legislativos. Para avaliar plenamente a eficácia dessas medidas, é essencial levar em conta variáveis institucionais, tais como o desenho das leis de cotas e as características do sistema eleitoral no qual as leis estão inseridas.1313. Em seguida se apresenta um breve resumo. Para uma análise aprofundada, consulte: Nélida Archenti e María Inés Tula, “Cuotas de Género y Tipo de Lista en América Latina,” Opinião Pública 13, no. 1 (jun., 2007): 185-218; Mark P. Jones, Santiago Alles e Carolina Tchintian, “Cuotas de Género, Leyes Electorales y Elección de Legisladoras en América Latina,” Revista de Ciência Política 32, no. 2 (2012): 331-57. Em relação ao desenho das leis, é necessário examinar se essas são obrigatórias ou não; se contemplam mandatos de posição (ou seja, se definem qual é o lugar que as mulheres candidatas devem ocupar, reservando as posições determinadas ou com chances de serem eleitas); e se incorporam sanções por descumprimento. No que se refere ao sistema eleitoral, a combinação de: sistemas eleitorais proporcionais (aqueles em que os assentos são distribuídos proporcionalmente ao número de votos obtidos); distritos de grandes magnitudes (distritos em que há vários lugares em jogo); em conjunto com listas eleitorais fechadas e bloqueadas (em que o eleitorado vota em lista elaborada pelo partido, sem a possibilidade de introduzir alterações) representam o cenário mais adequado para assegurar a eficácia das leis de cotas.

Para entender os diferentes graus de sucesso das cotas, também é necessário considerar variáveis culturais, especialmente em relação aos partidos políticos, os principais responsáveis por sua implementação. A aplicação dessas medidas não foi um caminho fácil, nem linear. Por outro lado, embora as cotas tenham sido concebidas como um piso, por causa da resistência dos partidos e de sua interpretação minimalista e burocrática dessas leis,1414. Nélida Archenti e María Inés Tula, “¿Las Mujeres al Poder? Cuotas y Paridad de Género en América Latina,” Seminario de Investigación 9 (22 feb. 2013), acesso em 26 nov. 2016, http://americo.usal.es/iberoame/sites/default/files/tula_PAPERseminario9_2012-2013.pdf. elas tornaram-se um teto máximo para a participação das mulheres. Um exemplo disso foram os resultados das eleições legislativas na Argentina em 2015. Quase 25 anos depois da promulgação da lei de cotas, um monitoramento das listas apresentadas em todo o país mostrou que 10% não cumpriam o disposto na lei de cotas (25 de 234 listas); e que, longe de ser um problema pontual, os descumprimentos ocorriam em partidos de todo o espectro político e em um terço das províncias argentinas.1515. “Ley de Cupo Femenino: 25 años de Incumplimiento en las Listas Electorales,” Equipo Latinoamericano de Justicia Y Genero (ELA), 6 de agosto de 2015, acesso em 26 nov. 2016, http://www.ela.org.ar/a2/index.cfm?fuseaction=MUESTRA&codcontenido=2215&plcontampl=12&aplicacion=app187&cnl=4&opc=6.

Em resposta a esses problemas, várias estratégias têm sido desenvolvidas, incluindo a introdução de modificações às leis de cotas para evitar violações da norma, e a intervenção das mais altas cortes de justiça, que vêm se manifestando sobre como devem ser interpretadas e aplicadas essas normas.

Um dos obstáculos persistentes que as cotas não foram capazes de superar, contudo, é o da geração de mudanças no processo de seleção de candidaturas,1616. Niki Johnson, “Las barreras que la cuota no superó: selección de candidaturas y desigualdades de género en América Latina,” In: La Representación Imperfecta. Logros y Desafíos de las Mujeres Políticas, ed. Nélida Archenti e María Inés Tula (Buenos Aires: Eudeba, 2014): 37-61. especialmente em relação ao aumento do número de listas partidárias chefiadas por mulheres.

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O caminho das cotas para a paridade

Os obstáculos e barreiras que ainda persistem para uma correta aplicação das leis de cotas têm motivado vários países a avançar das cotas para a paridade. A lógica por trás do princípio da paridade difere das cotas: não se trata de uma medida temporária, que determina um percentual mínimo de mulheres nas listas, mas implica que homens e mulheres participem em partes iguais (como pares) no processo eleitoral.

O conceito de “democracia paritária” foi cunhado em âmbito internacional na Declaração de Atenas (1992), no âmbito da Cúpula Europeia sobre “Mulheres no Poder”. Na América Latina, desde a 10ª Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, organizada pela Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL), conhecida como o Consenso de Quito (2007), a paridade tornou-se um dos princípios básicos da agenda regional. Equador (2008), Bolívia (2009), Costa Rica (2009) e México (2014) fizeram progressos no sentido da paridade, e iniciativas atualmente estão sendo discutidas para incorporar a paridade na Argentina, Colômbia, Panamá, Peru e Uruguai.

Por que é importante passar das cotas para a paridade na esfera política? Dois argumentos se destacam: o primeiro está vinculado à justiça distributiva. As mulheres representam mais de 50% da população e dos censos eleitorais, mas ocupam, em média, menos de 30% dos assentos em órgãos eletivos de representação. O segundo argumento é o de que a paridade resolve problemas decorrentes de características normativas das diferentes leis de cotas, particularmente no que diz respeito à determinação da percentagem mínima de mulheres e ao mandato de posição.1717. Archenti e Tula, “¿Las Mujeres al Poder?,” 2013.

Além disso, a paridade não é uma medida temporária, mas um conceito que poderia funcionar como um princípio orientador da democracia. Assim, seu potencial reside tanto em estampar nos Congressos as diversidades de interesses existentes em nossas sociedades, quanto em contribuir para estimular a igualdade de gênero para além do âmbito político. Embora até agora as reivindicações pela paridade tenham se limitado geralmente à demanda pela presença de 50% de homens e 50% de mulheres em listas eleitorais, de forma alternativa e sequencial, para garantir a representação igualitária de ambos os gêneros, a verdadeira paridade será alcançada quando as mulheres alcançarem a plena autonomia, tanto na sua dimensão política como em suas dimensões econômica e física.1818. Para uma análise do conceito de autonomia e suas dimensões, ver: “Informe Anual 2011: el Salto de la Autonomía. De los Márgenes al Centro,” Naciones Unidas, Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL) y Observatorio de Igualdad de género de América Latina y el Caribe (OIG), 2011, acesso em 26 nov. 2016, http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/3931/S2011102.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

Como a autonomia econômica e autonomia física se relacionam com a realização da igualdade de gênero nos processos de tomada de decisão? A autonomia econômica se refere à capacidade das mulheres de gerar renda e recursos próprios, a partir do acesso ao trabalho remunerado, em igualdade de condições com os homens. A incorporação das mulheres na vida pública não tem tido uma correlação na responsabilidade dos homens em trabalhos domésticos e de cuidado, que ainda recaem quase que exclusivamente sobre as mulheres. Essa distribuição injusta das tarefas de cuidado implica barreiras para as mulheres, não só no mercado de trabalho, mas também na esfera política.1919. O estudo de ELA (2011) mostra como a desigualdade na distribuição das tarefas de cuidado no interior das casas dificultam a conciliação da vida profissional e familiar das mulheres e causa impactos em suas carreiras políticas e configurações familiares. Em média, existem muito mais mulheres legisladoras separadas ou divorciadas, e com menor número de filhas/os, que seus pares masculinos. Ver: “Detrás del Número. Un Estudio sobre las Trayectorias Políticas de Mujeres y Varones en las Legislaturas Argentinas,” Equipo Latinoamericano de Justicia Y Genero (ELA), 2011, acesso em 26 nov. 2016, http://www.ela.org.ar/a2/index.cfm?fuseaction=MUESTRA&codcontenido=660&plcontampl=6&aplicacion=app187&cnl=14&opc=9.

No que diz respeito à autonomia física, ou seja, a capacidade de decidir sobre seus próprios corpos e viver uma vida livre de violência, a paridade não pode ser alcançada se não for intensificada a luta contra a violência contra as mulheres.2020. Para uma definição e análise da violência política contra as mulheres na América Latina, ver: Mona Lena Krook e Juliana Restrepo Sanín, “Género y Violencia Política en América Latina. Conceptos, Debates y Soluciones,” Política y Gobierno 23, no. 1 (2016): 127-62. A crescente participação das mulheres nos espaços de tomada de decisão tem sido acompanhada por atos de violência e perseguição política. Assim, é essencial dar visibilidade e sistematizar as ações de violência e assédio político contra as mulheres, assim como promover a geração de diferentes ferramentas para prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres na política.

Esses dados têm demostrado que, longe de ser um ponto de chegada, a promulgação de leis de paridade no campo legislativo constitui um primeiro passo para avançar para o pleno exercício dos direitos políticos das mulheres e para a realização das democracias paritárias. Posteriormente, abre-se um novo caminho que consiste, por um lado, em alcançar a efetiva implementação dessas leis, por meio de exercícios de monitoramento e avaliação, e, por outro lado, em transformar a cultura patriarcal dominante e as condições estruturais de maneira a habilitar as mulheres a um pleno exercício da sua autonomia, tanto no âmbito público como no privado.

Lucía Martelotte - Argentina

Graduada em sociologia, ciência política e administração pela Universidade de Salamanca (USAL), mestre em Democracia e Boa Governança pela USAL e doutoranda em Ciência Política pela Universidade de San Martín (UNSAM).
Consultora para a divisão de Assuntos de Gênero da CEPAL. Assessora para América Latina e Caribe de FRIDA (Fundo Jovem Feminista) e coordenadora da área política da Equipo Latinoamericano de Justicia y Género (ELA).

Recebido em novembro de 2016.

Original em espanhol. Traduzido por Sebastián Porrua.