Ensaios

Bancos e direitos humanos: uma experiência sul-africana

Bonita Meyersfeld e David Kinley

De que maneira a promoção do diálogo entre bancos e o setor de direitos humanos resulta em ganhos para todos‬‬

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RESUMO

Os atores de direitos humanos têm cada vez mais voltado suas atenções para o papel das corporações multinacionais (multinational corporations - MNC, no nome original em inglês) e a capacidade delas de promoverem ou impedirem a efetivação de direitos econômicos, sociais e culturais. Esta discussão requer a análise de todos atores relevantes, incluindo aqueles que financiam as operações de empresas multinacionais. Os bancos podem ter uma influência significativa nas operações das multinacionais e o papel deles deve ser objeto de um questionamento maior, em termos teóricos, políticos e práticos. Este artigo documenta e analisa algumas das iniciativas orientadas a políticas levadas a cabo na África do Sul voltadas à criação de normas para operações bancárias na região. Especialistas e profissionais que trabalham no continente africano se reuniram para examinar os contextos enfrentados pelos bancos envolvidos nos maiores projetos de desenvolvimento na região. Este processo resultou no Projeto de Princípios de Joanesburgo de 2011 – que ainda não foram adotados pelo setor – que diz respeito à proteção integral dos direitos humanos por parte dos bancos.‬‬‬‬‬

Palavras-Chave

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1. Introdução

O direito internacional e a regulação das corporações multinacionais são uma área do direito em rápido desenvolvimento e altamente contestada. Em geral, há consenso de que existe a necessidade de algum tipo de desenvolvimento de normas internacionais sobre as atividades das corporações multinacionais para prevenir as violações de direitos humanos. Isto se reflete nos parâmetros da ONU (e nos Princípios Orientadores que os integram) sobre Empresas e Direitos Humanos.11. UN Human Rights Council, “Guiding Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations ‘Protect, Respect and Remedy’ Framework: Report of the Special Representative of the Secretary-General on the Issue of Human Rights and Transnational Corporations and Other Business Enterprises”, John Ruggie, 21 March 2011, A/HRC/17/31. Os Princípios Orientadores levam em consideração três atores: comunidades afetadas (ou vítimas); empresas; e Estados. O foco deles, assim como a motivação para o debate internacional, gira em torno das corporações como entidades que realizam operações potencialmente danosas. No entanto, um interesse mais profundo sobre o tema está lentamente surgindo.

Neste artigo, propomos que os bancos são uma entidade fundamental e pouco analisada para a realização de operações empresariais centradas nos direitos humanos. Os bancos fornecem o capital com que os projetos de desenvolvimento de grande escala são financiados e estão no cerne da maioria das economias em todo o mundo. Desta forma, o papel deles requer uma análise mais específica e detalhada.

Durante 2011, a Faculdade de Direito da Universidade de Witwatersrand (Wits, na abreviatura em inglês) organizou duas mesas redondas de discussão sobre bancos e direitos humanos para promover uma melhor compreensão entre agentes financeiros e atores de direitos humanos. As mesas redondas deram base à formulação do denominado Projeto de Princípios de Joanesburgo – Um novo parâmetro para a África do Sul: Instituições Financeiras, Direitos Humanos e Melhores Práticas Internacionais (Projeto de Princípios de Joanesburgo), em novembro de 2011.22. Centre for Applied Legal Studies, “A New Framework for South Africa: Financial Institutions, Human Rights and International Best Practices Report of the Seminar and Proposed Johannesburg Principles”, Johannesburg, University of the Witwatersrand, November 2011, acesso em 18 julho 2014, http://www.wits.ac.za/files/e6mb7_488183001404139945.pdf. Os seminários reuniram representantes de três setores diferentes: ativistas de direitos humanos; acadêmicos; e pessoas que trabalham no setor bancário público e privado. Cada participante trouxe uma visão única e um amplo conhecimento, assim como aceitou que o grupo desenvolvesse uma abordagem que levasse em conta as dificuldades encontradas pelo setor bancário, garantindo, ao mesmo tempo, que este setor atendesse as preocupações dos ativistas de direitos humanos. No momento de elaboração deste artigo, o Projeto de Princípios de Joanesburgo estava sendo aprimorado e negociado com o objetivo de envolver os bancos na África do Sul.

O Projeto de Princípios de Joanesburgo, e as discussões que influenciaram os Princípios, são um ponto de referência útil para considerar o papel e as responsabilidades dos bancos na área de empresas e direitos humanos que se encontra em desenvolvimento. Este artigo discute a concepção e o desenvolvimento do Projeto de Princípios de Joanesburgo, com foco nas suas implicações no papel dos bancos no debate sobre empresas e direitos humanos. Em especial, os autores abordam o impacto e papel dos bancos que são da África Subsaariana ou operam na região. O foco se dá nesta região por duas razões.

A primeira é que a maioria dos trabalhos em direito internacional sobre empresas e direitos humanos é desenvolvido por acadêmicos e formuladores de políticas no Norte Global. Isso não quer dizer que o Sul Global esteja ausente ou calado na formulação do direito internacional. Em vez disso, nossa proposição é que o Sul Global pode e deve aumentar suas contribuições na discussão do direito internacional. Existe uma grande quantidade de literatura que discute a hegemonia mundial no direito internacional e o modo como os atores do Norte Global tendem a orientar as políticas internacionais.33. Sundhya Pahuja, Decolonising International Law: Development, Economic Growth and the Politics of Universality (Cambridge: Cambridge University Press, 2011); Richard Falk, Balakrishnan Rajagopal, and Jacqueline Stevens, eds., International law and the Third World: Reshaping Justice (London: Routledge, 2008); Tshepo Madlingozi, “On Transitional Justice Entrepreneurs and the Production of Victims,” Journal of Human Rights Practice 2, no. 2 (2010): 208–28; Meetali Jain and Bonita Meyersfeld, “Lessons from Kiobel v Royal Dutch Petroleum Company: developing homegrown lawyering strategies around corporate accountability,” South African Journal on Human Rights 30, no. 3 (2014): 430–57. Isso é relevante para as consequências das políticas internacionais, que tendem a ser influenciadas pelos interesses dominantes e/ou práticas destes atores. Por exemplo, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional contém três crimes: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra (sendo que a definição do crime de agressão ainda não foi elaborada). Por exemplo, vale ressaltar que o crime de despejar resíduos tóxicos ilegalmente não foi incluído no Estatuto. Há muitas razões para isso e nós não procuramos abordá-las neste artigo. Em vez disso, destacamos que o efeito dessa omissão é que uma das formas mais significativas de danos que afeta as economias em desenvolvimento – e uma prática que protege as economias desenvolvidas de terem que viver com resíduos tóxicos – não é um crime internacional. Há uma correlação (não necessariamente de causalidade) entre a violação considerada crime pelo Estatuto de Roma, que amiúde são violações cometidas por chefes de Estado da África, e a omissão em relação à definição de violações cometidas pelo mundo desenvolvido por meio do despejo de resíduos tóxicos.

Da mesma forma, existe, ao menos, uma correlação entre os atuais princípios de direito internacional (ou a falta dos mesmos) que regulam os bancos e o poder econômico do Norte Global, que é fortalecido em parte pelo atual status quo vis-à-vis as operações dos bancos. As mesmas deficiências ocorrem em relação aos princípios existentes em matéria de financiamento de projetos na África, como os Princípios do Equador,44. Equator Principles Financial Institutions, The Equator Principles III (Equator: The Equator Principles Association, June 2013, acesso em 6 novembro 2015, http://www.equator-principles.com/resources/equator_principles_III.pdf. que versam principalmente sobre as melhores práticas e o cumprimento das normas ambientais e se referem em menor medida aos direitos humanos – embora as normas de direitos humanos tenham sido inseridas na terceira versão dos Princípios do Equador em 2011.55. David Kinley, um dos autores deste artigo, coordenou uma sessão sobre Finanças e Direitos Humanos na ONU no “Fórum de Empresas e Direitos Humanos” do Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, em 5 de dezembro de 2012, durante o qual Ola Mestad, Presidente do Conselho de Ética, do Norwegian Sovereign Wealth Fund, fez essa mesma observação. O mesmo ocorre com as Diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que são recomendações dos governos às empresas multinacionais que operam nos países aderentes ou a partir deles (os 34 países membros da OCDE e mais oito países não membros: Argentina, Brasil, Egito, Letônia, Lituânia, Marrocos, Peru e Romênia).66. OECD, OECD Guidelines for Multinational Enterprises (Paris: OECD, 2008), acesso em 6 novembro 2015, http://www.oecd.org/corporate/mne/1922428.pdf. A maioria dos signatários é oriunda do Norte Global.

Também é significativo notar que os danos que propomos que sejam abordados estão alicerçados na estrutura da pobreza. No contexto da desigualdade econômica internacional, um fenômeno que, frequentemente, é pouco discutido no debate sobre empresas e direitos humanos é o fenômeno da pobreza, que representa uma variedade de violações de direitos humanos. Os bancos possuem um papel, embora limitado, na promoção da atividade empresarial que tem o potencial de reduzir a pobreza por meio da criação da riqueza e (fundamentalmente) da distribuição da riqueza. A recíproca também é verdadeira: os bancos possuem o papel de garantir que a atividade empresarial não professe que mitiga a pobreza quando, na verdade, ela perpetua a pobreza estrutural nas suas áreas de atuação.

‪A segunda razão para esta abordagem é que a África Subsaariana é a região com uma peculiar coexistência de crescente riqueza e crescente pobreza, particularmente no caso da África do Sul. A África do Sul é destinatária e perpetradora da atuação empresarial transnacional nociva. Como no caso da maioria dos países do BRICS, esta personalidade dupla se manifesta em uma economia em desenvolvimento que abriga uma parcela populacional indigente persistentemente alta.77. A pesquisa mais recente realizada sobre a África do Sul para o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM) ocorreu em 2012. O MPI é calculado tendo referência dez indicadores de pobreza por meio de três dimensões igualmente mensuradas: educação, saúde e padrão de vida. A pobreza multidimensional é definida como o estado de privação em pelo menos um terço dos indicadores mensurados. 11,1% da população da África do Sul é classificada como estando em situação de pobreza multidimensional. Além disso, 17,9% da população é vulnerável à pobreza (isto é, está privada de 20% a 33,3% das condições previstas pelos indicadores mensurados), 1,3% se encontra em pobreza extrema (isto é, está privada de 50% ou mais das condições previstas pelos indicadores), e 1% é indigente (isto é, privada de ao menos um terço dos indicadores mais extremos). O índice MPI difere de outros indicadores mais baixos de pobreza, tais como o percentual de pobreza de renda, isto é, pessoas que ganham 1,25 dólares por dia (13,8% da população) e 2,00 dólares por dia (31,3% da população). A Linha de Pobreza Nacional (National Poverty Line, no nome original em inglês) delimita a percentagem de pobres da África do Sul em 23%. Com vistas a contextualizar estas estatísticas, cabe destacar que a África do Sul possui um índice Gini de 0,631, o que demonstra a extrema disparidade de renda entre a população (Oxford, Oxford Poverty and Human Development Initiative (OPHI), 2014). Essa anomalia não é completamente nova, mas sua coexistência com o desenvolvimento de princípios de empresas e direitos humanos no direito internacional é inédita. Essas duas razões são centrais para nosso foco no Sul Global e na África Subsaariana.

O restante deste artigo está dividido em duas partes. Na próxima parte, iremos contextualizar o papel dos bancos nos âmbitos das lacunas de governança internacional que exacerbam a pobreza no Sul Global. Na parte final deste artigo descrevemos propostas concretas para um regime regulatório que contribuiria à capacidade de resposta dos bancos em relação às violações de direitos humanos cometidas pelas empresas multinacionais nas quais eles investem.

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2. Empresas, direitos humanos e bancos: a falta de um regulador

‪Ao levar em consideração o significativo poder dos bancos, especialmente no mundo em desenvolvimento, é interessante notar que relativamente pouca atenção tem sido dada a esta categoria de atores nos debates de direito internacional relativos ao tema de direitos humanos e empresas. Por exemplo, o debate sobre a indústria extrativista e os direitos humanos raramente inclui uma avaliação dos bancos que fornecem os investimentos à mineração. É verdade que há uma grande quantidade de debates sobre comércio, financiamento e investimento do ponto de vista desenvolvimentista,88. Veja, por exemplo, United Nations Economic ad Social Council Economic Commission for Africa, “Financing for Development: A progress report on the implementation of the Monterrey Consensus”, Meeting of the Committee of Experts on the 5th Joint Annual Meetings of the AU Conference of African Ministers of Finance, Planning and Economic Development, Addis Ababa, Ethiopia, 22-25 March 2012, E/ECA/COE31/10; AU/CAMEF/EXP/10(VII), que destaca a necessidade de melhorar os parâmetros que regem o financiamento para o desenvolvimento na África. mas a intersecção entre a análise do sistema de financiamento e do direito internacional dos direitos humanos é relativamente nova e uma questão pouco explorada.99. Mary Dowell-Jones and David Kinley, “The Monster Under the Bed: Financial Services and the Ruggie Framework,” in The UN Guiding Principles on Business and Human Rights: Foundations and Implementation, ed. Radu Mares (The Hague: Brill, 2012), 183.

“A intersecção entre a análise do sistema de financiamento e do direito internacional dos direitos humanos é relativamente nova e uma questão pouco explorada”

A relação entre os bancos e os direitos humanos possui uma relevância particular para as economias do grupo BRICS. Os Estados do BRICS, como a África do Sul, estão vivenciando um momento histórico único, no qual eles estão gerando o crescimento de suas próprias economias e contribuindo para o crescimento de outras economias menos desenvolvidas. Esta situação é particularmente verdadeira no caso da África do Sul, que é um Estado alvo da atividade financeira estrangeira, bem como possui seu próprio setor financeiro, que tem como alvo Estados africanos em desenvolvimento em seu entorno.1010. De acordo com o relatório de análise sobre Investimento Estrangeiro Direto (IED) de 2013 e da pesquisa de capacidade de atratividade da Ernst & Young, a África do Sul é o principal contribuinte ao investimento externo direto na África. Entre 2003-2012, houve um crescimento de 536% de novos projetos de IED que criaram mais de 45 mil postos de trabalho durante este período. Veja Ernst & Young, Repositioning the South African Investment Case, 2013, acesso em 6 novembro 2015, http://www.zuidafrika.nl/viewer/file.aspx?fileinfoID=360. Para uma economia emergente, essa dualidade fornece um momento crucial para a evolução do financiamento, no qual um sistema de regulação pode ser desenvolvido para proteger os padrões de direitos humanos tanto dentro da jurisdição desse Estado do BRICS, como em Estados vizinhos. Uma regulamentação apropriada poderia proteger um país, como a África do Sul, de práticas de investimento nocivas e exploratórias de investimentos estrangeiros. Ela também poderia garantir que o setor financeiro em crescimento da África do Sul aplique normas de proteção semelhantes nos investimentos realizados fora do país e, particularmente, na região em geral.

O Projeto dos Princípios de Joanesburgo foi formulado em resposta a esta oportunidade. As mesas redondas da Universidade de Wits possuíam três objetivos. O primeiro era reunir entidades que raramente interagem umas com as outras e, quando interagem, parecem “falar” idiomas diferentes. O conceito que talvez aproxime “financiamento” e “direitos humanos” é o de “risco” e de sua prevenção e gestão. Em relação a este ponto, pode haver um objetivo comum, por exemplo, que um investimento proposto não seja comprometido pela instabilidade legal ou social desencadeada por violações de direitos humanos. Normalmente, a definição desses dois campos tem criado, ao longo das décadas, posições arraigadas que são vistas como distintas e mutuamente excludentes. Já estava na hora de superar essa divisão.

O segundo objetivo dos Princípios era desenvolver parâmetros regionalmente relevantes para a integração de considerações de direitos humanos nas operações dos bancos que levasse em conta a situação única na qual a África do Sul se encontra, isto é, como um dos maiores mercados financeiros na África.

O terceiro objetivo era evitar o convencional desenvolvimento de normas Norte-Sul. Esta foi uma oportunidade de prevenir uma situação na qual as normas são desenvolvidas no Norte Global e, posteriormente, aplicadas ao Sul Global. Os bancos no contexto sul-africano enfrentam restrições similares e diferentes dos bancos na Europa e nos Estados Unidos. Desta forma, as mesas redondas procuraram permitir que a África do Sul liderasse a discussão garantindo padrões adequados para os empréstimos em seu próprio contexto.

“Por que os bancos e defensores de direitos humanos se encontrariam no mesmo lado da moeda?”

Por que os bancos e defensores de direitos humanos se encontrariam no mesmo lado da moeda? Conforme as discussões progrediram, um foco distinto sobre o financiamento de projetos surgiu (isto é, o financiamento a longo prazo de infraestrutura em larga escala ou de projetos industriais), com questões de direitos humanos e responsabilidades em operações que se tornaram mais claras nas funções relacionadas ao financiamento de projetos. Na elaboração dos seminários, duas questões vieram à tona. A primeira foi por que os bancos eram importantes à implementação dos direitos humanos e, em particular, para os direitos econômicos, sociais e culturais (ESC). A segunda pergunta era por que considerações de direitos ESC, em especial, teriam relevância para os bancos.

‪A primeira pergunta – por que o financiamento de projetos é importante para o direito dos direitos humanos – revela o papel obscuro e frequentemente oculto dos bancos. Quando a ideia de associar o financiamento de projetos e direitos humanos foi debatida pela primeira vez, diversos ativistas de direitos humanos franziram as sobrancelhas em surpresa. As empresas geralmente operam na esfera pública, com considerações sobre a reputação que, muitas vezes, (embora nem sempre) afetam suas contas. Um derramamento de petróleo, um despejo em massa ou a poluição química, são mais palpáveis neste sentido: facilmente perceptíveis e com um nexo claro entre a conduta corporativa e os impactos prejudiciais. No entanto, este nexo é menos claro quando se considera as responsabilidades dos bancos que fornecem dinheiro às corporações que cometem violações de direitos humanos. A invisibilidade dos bancos tem encoberto perguntas primordiais que devem ser feitas por ativistas de direitos humanos, especialmente após a crise financeira. Esses bancos são cúmplices nas ações nocivas cometidas pelas corporações multinacionais que eles financiam? Os bancos têm a obrigação de tomar medidas para ajudar a prevenir a violação de direitos humanos por parte das empresas nas quais eles investem? E, por último, é ilegal que os bancos lucrem com as operações das empresas multinacionais que são cúmplices ou cometem violações de direitos humanos?

Na melhor das hipóteses, as respostas jurídicas a essas questões são incertas. No entanto, as respostas estratégicas são todas afirmativas de modo categórico: o papel dos bancos importa em grande medida para a proteção dos direitos humanos. Sem investimento e financiamento, as atividades corporativas não existem. Além disso, na ausência de um arcabouço jurídico internacional abrangente que rija o papel das corporações multinacionais, os bancos se tornam uma espécie de regulador em potencial. Simplesmente ao eleger entre investir ou não nas corporações e ao impor condições de investimento, os bancos podem obrigar as empresas multinacionais a cumprirem com direitos humanos e normas ambientais internacionalmente aceitos. Desta forma, os bancos são, por si só, reguladores em potencial – in loco custodis, por assim dizer – na ausência de controles do Estado de origem dessas empresas e/ou dos Estados onde elas desenvolvem suas atividades.

‪Mas por que os bancos se importariam com as normas de direitos humanos? Os bancos amiúde descartam as considerações sobre os direitos humanos como sendo responsabilidade dos Estados, e não dos atores privados. Tais considerações são tipicamente vistas como alheias – ou, na verdade, fundamentalmente incompatíveis com o mandato voltado ao lucro que os bancos possuem. Esporadicamente, há pessoas no setor financeiro que argumentam que considerações sobre os direitos humanos são fundamentais para a boa tomada de decisões financeiras. O Documento de Reflexões do Grupo de Bancos Thun de 2013 sobre a implementação dos Princípios Orientadores das Nações Unidas para o setor bancário apresenta ambos os lados dessa discussão, quando expressa que “esta é uma questão complexa para os bancos, já que a maioria de seus impactos nos direitos humanos ocorre por meio das ações de seus clientes e são resolvidas por meio da influência, pressão e diálogo e não por meio da ação direta dos próprios bancos”.1111. The Thun Group of Banks, UN Guiding Principles on Business and Human Rights: Discussion Paper for Banks on Implications of Principles 16–21, October 2013, acesso 9 março de 2015, https://www.credit-suisse.com/media/cc/docs/responsibility/thun-group-discussion-paper.pdf.

Apesar dessa divisão entre o financiamento de projetos e os direitos humanos, há várias razões pelas quais as considerações sobre os direitos humanos devem ser vistas como parte integrante das operações dos bancos. A primeira é que estas considerações são indicadores úteis da estabilidade e do valor a longo prazo de um projeto. Uma análise que inclui direitos pode trazer à tona informações importantes sobre o retorno de investimentos e a gestão de riscos, e, por estas razões, tem sido argumentado que um empréstimo responsável significa um ganho financeiro, em vez de um custo.1212. United Nations Environment Programme Finance Initiative (UNEP FI) and Mercer, Demystifying Responsible Investment Performance: A review of key academic and broker research on ESG factors, 2007, acesso em 18 julho 2014, http://www.unepfi.org/fileadmin/documents/Demystifying_Responsible_Investment_Performance_01.pdf; Benjamin J. Richardson, “Financing Environmental Change: A New Role for Canadian Environmental Law,” McGill Law Journal 49, no. 1 (2004): 151.‪ A Comissão Europeia confirma esta posição, apontando que políticas social e ambientalmente responsáveis “proporcionam aos investidores uma boa indicação de boa gestão interna e externa. Elas contribuem para minimizar riscos ao antecipar e prevenir crises que podem afetar a reputação e provocar quedas abruptas nos preços das ações”.1313. European Commission, The Commission Green Paper on Promoting a European Framework for Corporate Social Responsibility, COM (2001) 366 final.

A segunda razão pela qual uma análise que inclui direitos se faz necessária para investimentos prudentes é o evidente valor monetário da reputação de uma corporação que, por sua vez, irá afetar o retorno que o banco receberá por seu investimento. Tem ocorrido um aumento significativo no valor financeiro reputacional das corporações, o que inevitavelmente irá afetar a rentabilidade das corporações a longo prazo. Por exemplo, o valor do capital reputacional da Coca-Cola em 2005 era estimado em 52 bilhões de dólares e o da Gillette, em 12 bilhões de dólares.1414. United Nations Environment Programme Finance Initiative (UNEP FI), A Legal Framework for the Integration of Environmental, Social and Good Governance Issues into Institutional Investment, October 2005, acesso em 18 julho 2014, www.unepfi.org/fileadmin/documents/freshfields_legal_resp_20051123.pdf. Dados mais atualizados não estavam disponíveis no momento de elaboração deste artigo. ‪O histórico memorando da Ford sobre o modelo de carro Pinto revelou que a Ford Motor Company sabia que este modelo tinha falhas no seu projeto que poderiam resultar em uma explosão do tanque de combustível quando o veículo fosse sujeito a uma colisão traseira. A Ford decidiu, com base numa análise de custo-benefício, que seria mais barato arcar com as demandas judiciais em relação aos casos de pessoas que morreram e ficaram deficientes em decorrência da falha de projeto, em vez de fazer um recall de todos os modelos Pinto. Levou décadas para que a Ford recuperasse as perdas em sua reputação – e perdas financeiras.1515. Gary T. Schwartz, “The Myth of the Ford Pinto Case,” Rutgers L. Rev. 43, no. 4 (1990-1991): 1013. Da mesma forma, o derramamento de petróleo no Golfo do México – e a ameaça de processo judicial – teve um impacto enorme no preço das ações da British Petroleum.1616. Emily Gosden, “BP profits slip as ‘Gulf spill disposals’ hit production”, The Telegraph, May 1, 2012, acesso em 20 julho 2014, http://www.telegraph.co.uk/finance/newsbysector/energy/oilandgas/9237910/BP-profits-slip-as-Gulf-spill-disposals-hit-production.html.

Um exemplo oposto é o da Johnson & Johnson na crise do Tylenol em 1982, que, apesar de ter ocorrido há mais de três décadas, ainda é um dos exemplos mais relevantes em matéria de proteção reputacional. Quando sete pessoas na região de Chicago, nos Estados Unidos, morreram depois de ingerir cápsulas do medicamento Tylenol extraforte que tinham sido embaladas com o veneno cianeto de potássio, a Johnson & Johnson promoveu um recall de todas as embalagens de Tylenol no mundo inteiro. Essa demonstração de honestidade – e a invenção por parte da Johnson & Johnson da primeira cápsula inerentemente à prova de falsificação – restaurou a reputação da empresa e suas ações retornaram ao patamar de 52 semanas em alta no qual elas eram negociadas pouco antes da crise.1717. Judith Rehak, “Tylenol made a hero of Johnson & Johnson: The recall that started them all”, New York Times, March 23, 2002, acesso em 20 julho 2014, http://www.nytimes.com/2002/03/23/your-money/23iht-mjj_ed3_.html.

‪Portanto, os bancos devem levar em conta o valor reputacional dos seus portfólios de empresas.1818. Richardson, “Financing Environmental Change,” 150; Rita Roca and Francesca Manta, Values Added: The Challenge of Integrating Human Rights into the Financial Sector (Copenhagen: Danish Institute for Human Rights, 2010), 21. Os direitos humanos, o impacto ambiental e as práticas das corporações em especial não são considerações irrelevantes ou fatores que não estão ligados ao dinheiro, conforme se reivindica às vezes.1919. UNEP FI and Mercer, Demystifying Responsible Investment Performance. Na verdade, as violações de direitos humanos não são boas para as empresas.2020. Iveta Cherneva, “The business case for integrating human rights and labour standards in finance,” in The Business Case for Sustainable Finance, ed. Iveta Cherneva (USA, Canada: Routledge, 2012), 97; UN Human Rights Council, “Business and human rights: further steps toward the operationalization of the ‘protect, respect and remedy’ framework: Report of the Special Representative of the Secretary-General on the Issue of Human Rights and Transnational Corporations and Other Business Enterprises”, John Ruggie, 9 April 2010, A/HRC/14/27. As enormes greves na mina de platina da empresa Lonmin, em Marikana, África do Sul, em 16 de agosto de 2012, trouxeram à tona uma falha geológica em plena ruptura subjacente à indústria da platina.2121. Justice Malala, “The Marikana action is a strike by the poor against the state and the haves”, August 17, 2012, acesso em 20 julho 2014, http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2012/aug/17/marikana-action-strike-poor-state-haves. Este modelo de negócios é claramente insustentável, uma mensagem que havia emanado da comunidade de direitos humanos poucos dias antes do massacre que se seguiu.2222. The Bench Marks Foundation, “Policy Gap 6 – A Review of Platinum Mining in the Bojanala District of the North West Province: A Participatory Action Approach”, 2012, acesso em 5 fevereiro 2013, http://www.bench-marks.org.za/research/rustenburg_review_policy_gap_final_aug_2012.pdf.

A verdadeira pergunta não é se os bancos possuem um papel a desempenhar no cumprimento dos direitos humanos, mas sim qual papel eles deveriam estar desempenhando. As mesas redondas na Universidade de Wits foram uma oportunidade de aproveitar esta pergunta e fornecer uma análise que está baseada na realidade e formulada com base em uma expertise interdisciplinar.

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3. Suprimindo a lacuna: o Projeto de Princípios de Joanesburgo e medidas práticas para os bancos

3.1. Mesas redondas

‪A crise financeira expõe as relações entre práticas financeiras ambíguas e violações de direitos humanos.2323. Mary Dowell-Jones, “Financial Institutions and Human Rights,” Human Rights Law Review 13, no. 3 (2013): 423–68. Quando o setor bancário erra, indivíduos e comunidades sofrem. O setor financeiro, impelido pela adoção dos Princípios Orientadores das Nações Unidas, encarou o desafio de estabelecer padrões que atenuem a sua contribuição às violações de direitos humanos. Houve um progresso considerável nesse sentido. Os Padrões de Desempenho da Corporação Financeira Internacional (IFC – sigla do nome original em inglês, International Finance Corporation) e as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais, por exemplo, exigem que o setor financeiro siga certas normas de direitos humanos e normas ambientais.2424. International Finance Corporation, “Performance Standards and Guideline Notes”, January 1, 2012, acesso em 20 julho 2014, http://www.ifc.org/wps/wcm/connect/topics_ext_content/ifc_external_corporate_site/ifc+sustainability/our+approach/risk+management/performance+standards/performance+standards+-+2012; OECD, OECD Guidelines for Multinational Enterprises (Paris: OECD, 2011), accessed July 20, 2014, http://dx.doi.org/10.1787/9789264115415-en. Tanto os padrões da IFC, quanto as Diretrizes da OCDE foram revisados em 2011 para incluir referências específicas aos Princípios Orientadores das Nações Unidas.

‪O problema que perdura é a questão da especificidade. Apesar de a IFC ter liderado o processo com o Guia de Avaliação de Impactos e Gestão em Direitos Humanos de 20102525. The International Business Leaders Forum and the International Finance Corporation, Guide to Human Rights Impact Assessment and Management (London, Washington: IBFL/IFC, 2010), acesso 20 julho 2014, http://www1.ifc.org/wps/wcm/connect/8ecd35004c0cb230884bc9ec6f601fe4/IFC_HIRAM_Full_linked.pdf?MOD=AJPERES. e, mais recentemente, com o estudo sobre os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos e o Parâmetro de Sustentabilidade da IFC, essas iniciativas proporcionam pouca orientação aos bancos sul-africanos sobre empréstimos responsáveis.2626. Podemos agregar que tampouco os Princípios de Maastricht sobre as obrigações extraterritoriais dos Estados na área de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (adotados em setembro de 2011) apresentam orientações sobre empréstimos responsáveis. Embora estes Princípios tenham sido evocados nas discussões durante as mesas redondas, eles praticamente não abordam responsabilidades estatais específicas a respeito dos impactos extraterritoriais em direitos humanos por parte dos bancos e outras instituições financeiras. Na verdade, o termômetro para medir os empréstimos responsáveis, que ainda são um conceito vago e nebuloso para muitos bancos, continua a ser o Acordo de Basileia III – arcabouço regulatório internacional para os bancos que está focado em questões de governança relativas aos requisitos mínimos de capital – em vez das preocupações mais amplas dos impactos sociais (não tanto em direitos humanos) dos bancos.2727. Bank for International Settlements, “International Regulatory Framework for Banks (Basel III)”, accessed July 18, 2014, http://www.bis.org/bcbs/basel3.htm. Os bancos precisam claramente de mais especificidade. Caso eles tenham que ser obrigados a desempenhar um papel na avaliação de violações de direitos humanos e gestão das mesmas, eles precisam saber o que define tais violações, quais são relevantes para eles e a natureza e o tipo de sua responsabilidade. Para qualquer advogado de direitos humanos, essas questões soam estranhas: as normas de direitos humanos pertencem ao direito internacional dos direitos humanos. No entanto, para os bancos, as normas de direitos humanos são vagas, indetermináveis e, muitas vezes, irreconhecíveis.

Neste contexto, era evidente que o setor financeiro sul-africano estava em condições de contribuir para essa situação por meio da criação interna de normas de práticas contextualmente relevantes. O objetivo das mesas redondas foi discutir o conteúdo dessas normas; como elas se aplicam no trabalho do setor financeiro sul-africano; a utilização dessas normas dentro de um contexto comercial; e o papel que idealmente o setor financeiro deve desempenhar para respeitar os direitos humanos na África do Sul, bem como na África como um todo. Essa discussão ocorreu dentro do âmbito da mitigação de riscos, utilizando uma abordagem baseada nos direitos humanos.

Bonita Meyersfeld, coautora deste artigo, coordenou duas mesas redondas em parceria com organizações locais e internacionais. Esses encontros reuniram especialistas e representantes de bancos, do setor privado, da academia, do setor público e autoridades governamentais e reguladoras. As discussões foram estruturadas em torno do que os bancos precisam fazer, em termos reais e práticos, para cumprir com as normas internacionais e nacionais de direitos humanos e, de modo mais significativo, o que eles são capazes de fazer, dadas as restrições regulatórias nas quais eles operam. Quatro temas emergiram.

3.2. Quatro temas

‪O primeiro tema focou nas obrigações pré-contratuais dos bancos com relação à avaliação de direitos humanos. O segundo considerou a medida na qual um banco possui responsabilidades pela promoção e proteção dos direitos humanos durante a duração de um projeto (as obrigações contratuais dos bancos). O terceiro tema se referia às responsabilidades dos bancos sul-africanos na observância aos direitos humanos nos projetos fora da África do Sul. A última área enfocou as consequências do incumprimento dos mutuários com as normas nacionais, regionais e internacionais de direitos humanos.

3.2.1. As obrigações pré-contratuais dos bancos

O processo de consulta pré-contratual – também conhecido como devida diligência – é uma fase essencial para determinar se um projeto proposto terá consequências sociais, econômicas ou ambientais nocivas. As seguintes questões práticas são obstáculos em potencial para a avaliação pré-contratual das normas de direitos humanos em um projeto: (i) falta de consulta da comunidade; (ii) falta de transparência, especialmente como resultado da mercantilização da informação corporativa; (iii) a questão de quem do banco leva a cabo a devida diligência e aos custos de quem; e (iv) a obrigação de determinar quais fatores são levados em conta na avaliação da eficácia e do impacto do projeto proposto, e quando esta avaliação deve ocorrer.

i. Devida diligência: A avaliação do projeto e o processo de consulta

A consulta é um aspecto fundamental da devida diligência no financiamento de um projeto. Os bancos podem buscar consultar as comunidades potencialmente afetadas e os responsáveis pelo projeto. De acordo com os Princípios do Equador, a maioria dos bancos signatários deve adotar uma política de “engajamento efetivo das partes interessadas” com o mutuário para apresentar soluções para qualquer potencial violação de direitos das comunidades.2828. Equator Principles Financial Institutions, Equator Principles, 7. Isto faz parte do processo de devida diligência do projeto, que tem uma série de objetivos, incluindo, mas não apenas, fazer uma avaliação da taxa de retorno (ou seja, o grau no qual se espera que o empréstimo de um banco seja restituído com uma determinada taxa de juros que contribui para o lucro do banco). Este processo também garante que um banco responsável trabalhe em parceria com o mutuário para prevenir convulsões sociais e violações de direitos humanos. A participação efetiva e significativa no projeto numa fase inicial garante uma compreensão compartilhada de seus objetivos. Isso é necessário para garantir o respeito da dignidade e o direito de escolha das comunidades. Caso a consulta seja bem-sucedida, este processo também garante o apoio da comunidade, um ingrediente essencial para assegurar a implementação e o sucesso a longo prazo dos projetos.

“Continua a existir uma grande incerteza sobre o alcance e o conteúdo de uma avaliação de direitos humanos pré-contratual dos projetos financiados”

‪Apesar da importância da consulta pré-contratual, este processo suscita uma das mais controversas áreas em relação às empresas e os direitos humanos, isto é, em que medida as empresas são obrigadas a consultar as comunidades que rodeiam geograficamente a região onde elas pretendem operar. A grande quantidade de pesquisa e literatura em torno do consentimento livre, prévio e informado é relevante neste contexto.2929. Cristina Hill, Serena Lillywhite and Michael Simon, Guide to Free Prior and Informed Consent (Melbourne: Oxfam Australia, 2010), acesso em 5 fevereiro 2013, https://www.culturalsurvival.org/sites/default/files/guidetofreepriorinformedconsent_0.pdf; Robert Goodland, “Free, Prior and Informed Consent and the World Bank Group,” Sustainable Development Law & Policy 4, no. 2 (2004): 66. Os bancos enfrentam o mesmo paradigma de “consulta versus consentimento” das empresas em seus portfólios, mas com pouca orientação sobre como abordar o envolvimento da comunidade e até que medida este é o papel do banco. Por exemplo, não está claro qual é o objetivo do processo de consulta. O processo de consulta é para compartilhar informações ou uma negociação para alcançar consentimento? Os padrões internacionais de consentimento livre, prévio e informado se aplicam aos bancos ou apenas aos mutuários? Os bancos devem avaliar apenas o risco de investimentos ou também o risco de não financiar projetos? O que acontece caso a comunidade rejeite o projeto, mas o governo o aprove?3030. Mark Curtis, Precious Metal: The Impact of Anglo Platinum on Poor Communities in Limpopo, South Africa (Johannesburg: ActionAid, 2008), acesso em 18 julho 2014, http://www.actionaid.org.uk/doc_lib/angloplats_miningreport_aa.pdf. Levando em consideração que uma comunidade não é homogênea e, diversas vezes, inclui grupos com diferentes graus de poder e vulnerabilidade, com quem o banco deve realizar a consulta?3131. Embora possa ser evidente que uma determinada comunidade pode ser afetada por um projeto, não está claro quem naquela comunidade deve ser consultado. As comunidades não são entidades homogêneas ou uniformes. Sendo assim, os membros da comunidade podem ter opiniões diferentes sobre um projeto proposto. De modo ideal, o processo de consulta deve garantir que os pontos de vista dos vários subgrupos dentro das comunidades sejam ouvidos. Uma atenção especial deve ser dada aos pontos de vista das mulheres e outros subgrupos dentro das comunidades (que muitas vezes são excluídos dos órgãos oficiais de representação). Para uma discussão sobre o envolvimento das comunidades, veja Centre for Applied Legal Studies (CALS), Community Engagement Policy (Johannesburg: University of the Witwatersrand, 2014), acesso 6 novembro 2015, http://www.wits.ac.za/files/25gim_168271001427097717.pdf. Como é evidente a partir deste conjunto de questões, não há dúvida quanto à importância da consulta, mas continua a existir uma grande incerteza sobre o alcance e o conteúdo de uma avaliação de direitos humanos pré-contratual dos projetos financiados.

ii.. Transparência

‪Também é desafiador pensar até que medida um processo de devida diligência pode ser completamente transparente. Quão transparente a devida diligência – e, por consequência, a consulta – deve ser? É possível que a consulta produza um material sensível ao mercado, que é confidencial e economicamente valioso. A proteção dessa informação como uma mercadoria impõe restrições de confidencialidade que atenuam a amplitude na qual os bancos podem ser transparentes em relação às suas decisões. Como os bancos devem gerenciar o imperativo da confidencialidade versus o imperativo de transparência na busca de um processo de consulta baseado em direitos?

iii. Consultores e Paridade de Armas

‪Uma das principais preocupações expressas pelos representantes do setor bancário é a do papel dos consultores que levam a cabo as avaliações de direitos humanos e impacto ambiental. Os consultores são custosos (em grande parte, eles são custeados pelos próprios bancos) e, muitas vezes, não produzem relatórios que sejam rigorosos e suficientemente aprofundados. Este não é um problema apenas para os bancos, mas também para a maioria das empresas privadas, que buscam terceirizar esse conhecimento especializado de engajamento com a comunidade. O setor privado como um todo precisa melhorar o seu monitoramento e a avaliação dos consultores e garantir que eles tenham conhecimento e expertise necessários relacionados aos direitos humanos.

‪Este processo também é agravado pelo fato de que raramente há “paridade de armas” na consulta – isto é, a garantia de que a comunidade tenha uma representação legal, conhecimento de seus direitos e informações técnicas sobre as consequências do projeto que sejam adequados (para não dizer equânimes).3232. CALS, Community Engagement Policy, 29-30. Isto amiúde impede um processo de consulta completa e igualitária, o que é agravado por outros fatores relacionados, tais como diferenças linguísticas e culturais.

iv. Uma análise holística e a longo prazo

‪Frequentemente, a competição no setor de financiamento cria um contexto de visão de curto prazo, com vistas à maximização do lucro no menor período de tempo possível. Isto é frequentemente contraditório em relação ao impacto a longo prazo do financiamento do projeto com respeito a fatores sociais e ambientais. Este foi um dos primeiros e, provavelmente, mais óbvios pontos de discórdia entre a teoria de proteção de direitos e a realidade de tomada de decisões de financiamento. Uma avaliação de direitos humanos requer uma análise não apenas sobre o impacto financeiro de curto prazo do contrato, mas também sobre seu impacto ambiental, social e cultural a longo prazo. Embora isto possa ser contrário à tendência histórica de olhar para os lucros em curto prazo que serão obtidos por um projeto, esta abordagem dupla tem vantagens comerciais claras.3333. Veja Bonita Meyersfeld, “Institutional investment and the protection of human rights: a regional proposal,” in Globalisation and Governance, ed. Laurence Boulle (Cape Town: Siber Ink, 2011).

‪A adoção de uma abordagem holística e em longo prazo sobre o financiamento exige uma mudança em relação à natureza na tomada de decisões de investimento e um aumento das expectativas de mercado. Essas mudanças não virão naturalmente ou serão fáceis para o setor financeiro e, sem dúvida, não ocorrerão sem uma obrigação judicial que as impulsione. No entanto, os participantes das mesas redondas reconheceram a possibilidade de incluir considerações de longo prazo nos processos de consulta e avaliação que precedem a celebração do contrato de investimento.

‪É óbvio que os processos pré-contratuais de devida diligência são essenciais, mas a forma detalhada de como eles são implementados possui mais perguntas do que respostas. As propostas que constituem o Projeto de Princípios de Joanesburgo em matéria de avaliação de direitos humanos pré-contratuais procuram criar mais especificidades sobre uma exigência de outra maneira vaga.

3.2.2. As obrigações previstas nos contratos dos bancos

i. Normas de direitos humanos como termos e condições nos contratos de empréstimo

Normalmente os bancos impõem obrigações “dentro dos contratos” para garantir que o projeto no qual investem está operando de acordo com os requisitos legais e regulatórios. O mesmo ocorre em relação às normas de direitos humanos. A fase de devida diligência é, claramente, a fase na qual o banco teria mais controle na avaliação do potencial de riscos. No entanto, esta obrigação não termina quando o projeto começa. É precisamente nesta etapa na qual um credor pode exercer um tipo de controle regulatório que os Estados podem ser incapazes de propiciar. Tendo isso em mente, se considera que os bancos não são órgãos reguladores do governo, nem podemos esperar que eles sejam estes órgãos. No entanto, eles podem ser monitores poderosos com o potencial de suspender o financiamento, caso a falta de conformidade com as normas de direitos humanos seja um termo do contrato de financiamento. Todas essas questões podem e devem ser esperadas dos bancos.

Cláusulas contratuais e condições claras são um método eficaz para fazer com que os mutuários cumpram obrigações de direitos humanos. Se um mutuário viola uma condição do contrato de empréstimo relacionada às normas de direitos humanos, isto se caracteriza como o incumprimento do contrato de empréstimo (em parte ou na sua totalidade). Atualmente, as condições contratuais incluem, como uma questão de praxe, as proibições de condutas ilegais. No entanto, as mesas redondas na Universidade de Wits tornaram evidente um claro consenso de que é necessário ir além de simplesmente evitar o que é ilegal segundo o direito nacional (como o trabalho infantil) para garantir que os contratos não violem normas regionais ou internacionais de direitos humanos.

ii. Grau de monitoramento e intervenção: Empréstimos em parcelas

Uma questão central para os bancos, contudo, é até que medida faz parte de sua atividade principal monitorar ativamente os projetos que eles financiam. Durante a vigência de um contrato, os bancos são relutantes em se envolverem no monitoramento dos projetos, inclusive porque este envolvimento na implementação diária do projeto do mutuário pode expor os bancos à possibilidade de responsabilização. Por outro lado, um credor ausente pode muito bem ser acusado de cumplicidade se o seu investimento está associado a violações de direitos humanos.3434. Veja a denúncia feita pela organização Women of Marikana ao Ouvidor/Ombudsman (Compliance Advisor / Ombudsman - CAO, na denominação em inglês) sobre as falhas da IFC em monitorar seus investimentos na mina de Lonmin em Marikana: Denúncia dos membros da comunidade atingidos sobre os impactos sociais e ambientais das atividades da Lonmin Cia. Ltda em Marikana disponível em http://www.wits.ac.za/files/1idfa_460089001435829170.pdf.

Um equilíbrio baseado no bom senso deve ser encontrado, por meio do qual os bancos possam insistir que normas de direitos humanos façam parte de seus instrumentos financeiros. No entanto, tais normas só podem ser executadas quando os bancos possuem poder de pressão. Normalmente, os bancos disponibilizam o valor total do empréstimo para o mutuário, com um cronograma de devolução do empréstimo durante o projeto. Isto diminui o poder de pressão e enfraquece a capacidade do banco de fazer uma empresa prestar contas. Dessa forma, fornecer o empréstimo em parcelas em vez de em um montante total antecipado é um mecanismo essencial – e inteiramente possível – pelo qual se pode fazer um mutuário prestar contas. Os bancos terão pouca ou nenhuma influência quando a totalidade do empréstimo tiver sido depositada de uma só vez. Portanto, a implementação de empréstimos em parcelas é preferível, permitindo que parcelas subsequentes dos empréstimos sejam usadas como instrumento de pressão para o cumprimento das condições contratuais.

iii. ‪Consequências causadas por mutuários que cometem violações de direitos humanos durante a vigência do contrato: Responsabilidades associadas

Além de identificar considerações de direitos humanos pertinentes e aplicáveis, talvez uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo setor financeiro é em relação ao que ele deve fazer caso e quando uma violação de direitos humanos é identificada na fase de devida diligência pré-contratual ou durante a execução do projeto. A tendência crescente por parte dos bancos é de interceder junto ao mutuário para que a violação seja descontinuada, ao invés de rescindir o contrato financeiro.3535. Meyersfeld “Institutional Investment,” 174. A suspensão e rescisão de contratos financeiros são opções extremas, utilizadas apenas como medidas em último caso. Essas medidas devem ser usadas ​​com cautela, não apenas por causa das implicações financeiras, mas também porque elas podem ter efeitos negativos na comunidade na qual o projeto está sendo implementado. As consequências não intencionais de deixar um projeto, em qualquer fase de sua execução, não devem ser subestimadas.

“Cada vez mais [os bancos] têm responsabilidades pelas condutas associadas às violações de direitos humanos”

‪No entanto, como sempre, há fatores que competem entre si. Do mesmo modo que os bancos devem ter cautela na determinação de sua abordagem sobre as violações de direitos humanos cometidas por seus mutuários, eles também devem ser prudentes para se proteger contra a sua própria responsabilidade. Os bancos podem operar nos bastidores em relativa opacidade, mas cada vez mais têm responsabilidades pelas condutas associadas às violações de direitos humanos. Essa responsabilidade depende de uma série de fatores, incluindo a proximidade com a empresa, o grau no qual o banco manteve ou deveria ter mantido o controle sobre o projeto e a gravidade dos danos ocasionados. Quando os bancos estão próximos à violação ou possuem poder sobre a execução do contrato, eles podem ser uma das partes responsáveis. Quanto mais significativo o dano sofrido pelas pessoas afetadas, mais provável que a responsabilidade se materialize. Uma norma de negligência pode muito bem ser aplicada. Caso um banco seja negligente e não cumpra com a norma de razoabilidade de devida diligência e de monitoramento contratual, então a perspectiva de responsabilidade punitiva pode se configurar.

Quando um mutuário comete direta ou indiretamente violações de direitos humanos, ou é cúmplice nessa prática, os bancos devem tomar as seguintes medidas:

    • Interceder junto ao mutuário para pôr fim às violações, garantir a não repetição das violações e se comprometer com a remediação, conforme estabelecem as normas internacionais, tais como o princípio 5 dos Princípios III do Equador e o Princípio 22 das Diretrizes da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos;
    • • Sempre que possível, postergar, suspender ou cancelar o empréstimo, quando o mutuário falhar em implementar novamente o cumprimento das normas; e
    • • ‪Sempre considerar as consequências não intencionais de qualquer ação corretiva, como a perda de renda para a comunidade local, antes de efetuar o cancelamento de um contrato.

‪A realização de uma abordagem com enfoque de direitos humanos em relação ao financiamento exige a incorporação de especialistas de direitos humanos e ambientais em todas as operações dos bancos. A equipe de gestão, os acionistas e correntistas devem ser incentivados a apoiar estas iniciativas. Isto é necessário para o bem da rentabilidade dos investimentos, assim como devido à necessidade de atenuar a responsabilidade pelas violações de direitos humanos. Dessa forma, o futuro é claro. O tipo de responsabilidade dos bancos está se transformando e o setor deve se antecipar e se envolver nessa transformação.

3.2.3. Extraterritorialidade: Responsabilidade pela observância dos direitos humanos nos projetos fora da África do Sul

Conforme observado anteriormente, um dos maiores desafios para a implementação dos direitos ESC é definir até que medida as corporações podem ter um impacto negativo na implementação destes direitos em jurisdições fora do Estado no qual elas têm personalidade jurídica ou possuem seu principal local de atividades. Diversas pessoas argumentam que as regras que regem uma sociedade anônima em seu Estado de origem devem ser aplicadas igualmente às suas atividades fora deste Estado3636. Veja Marko Milanovic, Extraterritorial Application of Human Rights Treaties: Law, Principles and Policy (Oxford: Oxford University Press, 2011); Daniel Augenstein and David Kinley, “Beyond the 100 Acre Wood: in which international human rights law finds new ways to tame global corporate power,” The International Journal of Human Rights, 19, no. 6 (2015): 828–48. Esta é uma consideração igualmente importante para os bancos, particularmente para aqueles que operam nas jurisdições dos países do BRICS onde os projetos de desenvolvimento colocam os bancos em uma situação em que eles são, simultaneamente, entidades que demandam padrões justos e das quais padrões justos estão sendo exigidos.

Isto é particularmente verdadeiro no caso da África do Sul, que está prestes a se tornar o verdadeiro “Estados Unidos da África” ​​na região. As oportunidades de financiamento de projetos no continente africano são vastas e a África do Sul é uma das sedes financeiras para estas atividades. Apesar disso, os bancos sul-africanos operam em uma zona nebulosa de uma economia emergente. Os bancos sul-africanos irão aplicar normas de direitos humanos para os projetos que financiam por todo o continente ou será que eles também se tornarão atores na exploração dos Estados que contam com poucas regulações?

‪Um fator que representa um empecilho para os bancos é que as jurisdições nacionais podem ter diferentes normas de direitos humanos do regime internacional ou regional. De acordo com as normas estatais de conduta extraterritorial, bem como as melhores práticas atuais dos bancos sul-africanos, os participantes das mesas redondas concordaram que as normas estatais teriam precedência, desde que essas normas satisfizessem as melhores práticas internacionais básicas. Desta forma, se as normas exigidas pelo Estado anfitrião são mais elevadas que as normas internacionais, as normas do Estado anfitrião devem ser aplicadas.

04

4. Conclusão

Este artigo analisa algumas das diversas considerações de direitos humanos que têm impacto no setor de financiamento, assim como certas iniciativas orientadas por políticas, empreendidas na África do Sul, para a criação de normas para os bancos que operam na região. Ativistas, advogados, acadêmicos e bancos (tanto públicos como privados) ao redor do mundo estão se deparando com questões de características excepcionais e circunstâncias modernas de financiamento em um contexto de empresas e direitos humanos que, por enquanto, mal reconhece, muito menos entende as demandas que devem ser feitas ao setor financeiro para torná-lo mais favorável à proteção e promoção dos direitos humanos.

‪O Projeto de Princípios de Joanesburgo reuniu atores importantes no contexto sul-africano em um esforço para determinar os contextos financeiros e de direitos humanos enfrentados pelos bancos que financiam grandes projetos de desenvolvimento na região. O objetivo foi relacionar as exigências das normas de direitos humanos com as vicissitudes enfrentadas pelos bancos. Os Princípios resultantes não possuem um fim em si mesmo, mas se destinam a gerar mais discussões e colaboração entre os atores de direitos humanos, banqueiros, governos e acadêmicos que possam gerar um enfoque de direitos humanos para o financiamento que tenha sentido para as empresas e para as pessoas que conduzem as mesmas.

Como resultado das mesas redondas da Wits, o Projeto de Princípios de Joanesburgo foi formulado e divulgado para maior discussão e recebimento de insumos do setor financeiro na África do Sul. A próxima etapa do projeto será organizar uma série de encontros com os bancos e seus órgãos de representação durante 2015 e 2016 destinados a chegar a um consenso entre os participantes para que eles adotem formalmente os Princípios. Não obstante, o fato é que os Princípios continuam a ser objeto de contínua discussão conjunta e análise. Eles dialogam com a proteção contra a violação corporativa de direitos humanos em geral e, em particular, com os direitos ESC, e constituem um resumo do desenvolvimento de parâmetros para a proteção viável dos direitos humanos pelos bancos. Os Princípios representam a condensação de opiniões de uma série de atores envolvidos nesse processo, e buscam também estabelecer limites e fornecer orientações aos bancos em relação ao papel que as considerações de direitos humanos devem desempenhar no pensamento estratégico, na implementação de políticas e gestão operacional.

Bonita Meyersfeld - África do Sul

Bonita Meyersfeld é professora associada da Universidade de Wits e Diretora do Centre for Applied Legal Studies. Ela também é editora e diretora executiva do South African Journal on Human Rights e coordenadora das mesas redondas dos Princípios de Joanesburgo.

Recebido em Março de 2015

Os autores gostariam de agradecer a Georgina Meikle, da Sydney Law School, e Raisa Cachalia, da Universidade de Witwatersrand, por sua excelente assistência nas pesquisas para a elaboração deste artigo, bem como aos editores da SUR por suas pertinentes sugestões editoriais.‬‬

Original em Inglês. Traduzido por Fernando Sciré.

David Kinley - Austrália

David Kinley é professor titular da cátedra de Direito dos Direitos Humanos da Sydney Law School e membro do conselho acadêmico da associação de advogados Doughty Street Chambers, sediada em Londres.

Recebido em Março de 2015

Os autores gostariam de agradecer a Georgina Meikle, da Sydney Law School, e Raisa Cachalia, da Universidade de Witwatersrand, por sua excelente assistência nas pesquisas para a elaboração deste artigo, bem como aos editores da SUR por suas pertinentes sugestões editoriais.‬‬

Original em Inglês. Traduzido por Fernando Sciré.